O cheiro do peixe

A separação entre trabalho e o restante da vida social é um traço marcante da sociedade brasileira. Da senzala ao quarto de empregada, a necessidade de segregar tudo que relembre a lida e exale suor, é uma tarefa que vem sendo meticulosamente realizada, desde a colonização.
Aqui em Santos, no final do século XIX, a "higienização" da cidade ganhou status de caso de polícia, quando o Estado reagiu às epidemias, provocadas pela falta de saneamento e péssimas condições de moradia, despejando trabalhadores e ateando fogo nos muquifos em que habitavam.
Desde então, progressivamente, nossa sociedade vem logrando êxito nesta tarefa de "higienizar" a Cidade. Assim, separar tudo que relembre a árdua tarefa de trabalhar pesado, das áreas "residenciais", tornou-se quase uma obsessão para os santistas.
Não que eu goste do cheiro de pelet de laranja, mas acho que estamos exagerando na medida.
Neste aspecto, é exemplar o caso da Rua do Peixe, perseguida por setores da sociedade, desde que o Prefeito David Capistrano, ironicamente um sanitarista, resolveu dar um basta nas péssimas condições de comercialização do pescado, por ambulantes que ocupavam o passeio junto à balaustrada da Avenida Saldanha da Gama, na Ponta da Praia.
Nem vou entrar no mérito da confusão gerada pelo fechamento da passagem aberta na balaustrada, ocorrida na semana passada, pois acho que a questão vem sendo bem encaminhada pelo Ministério da Pesca e Aquicultura, que tende a aceitar a utilização do Terminal Pesqueiro, por pescadores artesanais, desde que a Prefeitura colabore na construção de um píer adequado e provisório, pois o definitivo ainda está em fase de planejamento.
Mas a despeito de decisões judiciais, às vezes discutíveis, todo este alvoroço e insistência em se afastar a Rua do Peixe do local que hoje ocupa, para mim nada mais é do que o velho processo de "higienização" da cidade, em curso. E neste caso, ironicamente, trata-se de afastar da vista e do nariz a própria identidade daquele bairro: a pesca.

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