Foi tudo planejado (parte IV)


No post desta série, publicado ontem, vimos como o esvaziamento do centro de Santos e a expansão horizontal da urbanização criaram dois movimentos pendulares diários, ortogonais entre si, que implicaram em grandes investimentos na área de transporte e trânsito regional.
Se por um lado parte da população passou a se deslocar entre centro e orla, outra parte passou a se deslocar entre zona noroeste, morros e municípios vizinhos, em direção ao centro e zona leste de Santos.
O papel do planejamento foi determinante para a formação desta dinâmica, na medida em que foi decisivo, por ação ou por omissão, para o esvaziamento do centro e para a fixação da população em áreas mais distantes. O próprio Plano Regulador, de Prestes Maia, que nunca chegou a ser inteiramente implementado, devido ao alto custo das desapropriações, era orientado para promover a expansão horizontal da região, dando primazia às intervenções viárias.
A partir da metade do século XX, um fator foi fundamental para o impulso que faltava para a criação do padrão de mobilidade, marcadamente apoiado no transporte individual: o surgimento da indústria automobilística. Esta indústria influiu decisivamente na qualidade de vida de nossas cidades e moldou novas centralidades, seja pela formação de áreas verticalizadas a beira mar, voltadas ao turismo balneário, seja na estruturação de eixos comerciais ao longo das principais vias de ligação entre as diferentes áreas das cidades.
Em São Paulo, o automóvel possibilitou o deslocamento de milhares de famílias, aos finais de semana e temporadas, em busca das praias santistas. Este processo foi acompanhado pela intensa verticalização da orla, possibilitada pela legislação urbanística local, moldada segundo o desejo de empreendedores imobiliários, desde o Decreto-lei 403/45, que criou o Código de Obras, passando pela Lei n° 1.831/56 e desaguando no Plano Diretor Físico de 1968, que consolidou o padrão vertical dos bairros desta área.
Esta verticalização esgotou rapidamente os terrenos próximos ao mar e prejudicou a balneabilidade das praias. Ao mesmo tempo, o governo estadual passou a estruturar o sistema viário regional, o que foi decisivo para que os investimentos imobiliários se direcionassem para Guarujá e Praia Grande, reproduzindo nestas cidades, guardadas as devidas proporções e com o apoio da legislação urbanística, o mesmo padrão segregador (verticalização rica x horizontalização pobre).
Este processo reduziu a produção imobiliária em Santos, mas os efeitos de uma urbanização extremamente desigual já haviam se consolidado. Foi em 1975, que a Prodesan montou um grupo técnico para implantar na cidade um processo contínuo de planejamento, a partir do conhecimento da realidade, da construção de quadros prospectivos, proposta de estratégia de ação, enfrentamento de problemas emergentes e projetos setoriais.
Este esforço resultou na produção do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado - PDDI 76/78. Por meio de uma análise exaustiva de dados, estes técnicos traçaram um perfil da estrutura urbana de então, buscando atingir objetivos explicitados no PDDI 76 e identificavam-se os efeitos do Plano de 1968, bem como os fenômenos espontâneos, que possuíam forte determinação social.
Nessa proposta estavam contidos os seguintes princípios: uso do solo; reforço das unidades ambientais; preservação do conforto ambiental; reforço do centro; aprimoramento da paisagem urbana; equipamentos urbanos e acessibilidade (no sentido atual de mobilidade).
Finalmente havia caído a ficha de que a dinâmica socioeconômica, lastreada no planejamento executado nas seis primeiras décadas do século, havia produzido uma cidade com sérios problemas urbanos, que precisavam ser enfrentados.
Embora os PDDI não fossem instrumentos legais, neles estava contida uma proposta clara de alteração do uso do solo, de forma a controlar o adensamento futuro. Também se propunha o controlar a “verticalização indiscriminada” e adotar critérios de controle da ocupação e urbanização nos morros, os quais vinham sendo estudados paralelamente.

Mas, por não ter sido transformado em lei, os PDDI permaneceram como letra morta. Da mesma forma, a legislação em estudo, como conseqüência das conclusões contidas nos PDDI, nunca veio a ser efetivamente encaminhada à Câmara, pelo menos na forma que se pretendia. Pelo que se pode deduzir a partir da leitura das propostas do PDDI 78, esses projetos de lei não tinham afinidades com os interesses reais do setor da promoção imobiliária, que era indiferente ao controle da ocupação nos morros e sempre viu com maus olhos as iniciativas visando restringir a verticalização na zona leste.
Esta etapa frustrante do planejamento santista coincidiu com a crise econômica brasileira, que resultou em forte desaceleração da economia local e na paralisação de várias obras estratégicas previstas para a região, trazendo desemprego e ampliando os assentamentos precários na Baixada.
Na década de 1980, a situação agravou-se e o planejamento implementado nos municípios centrais da Baixada não foi capaz de apresentar propostas para enfrentar a séria crise de habitação, saneamento e mobilidade que assolou a região. No caso de Santos, a grande preocupação dos responsáveis pelo planejamento era mais criar estímulos à produção imobiliária, por meio da flexibilização de alguns dispositivos do Plano de 68, do que enfrentar as condições cada vez mais precárias de moradia nos morros, na Zona Noroeste e nos cortiços da área central.
Foi neste contexto de iniqüidade espacial e crise econômica que, pela primeira vez, uma coligação de esquerda assumiu a prefeitura de Santos e tentou implementar formas de planejamento mais democráticas. A continuação desta história fica para amanhã.

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