Foi tudo planejado (parte III)


Prosseguindo a série de posts acerca dos vínculos entre planejamento urbano e redução da mobilidade, na Baixada Santista, relembro que ontem abordei a forma como o discurso sanitarista, baseado na necessidade de erradicar as epidemias, no final do século XIX, foi apropriado pelas classes dominantes, com o objetivo de criar zonas de exclusão social em Santos. Justamente nestas áreas passaram a se concentrar os investimentos públicos, mantendo-se uma razoável oferta de infraestrutura e serviços, como antes não havia.
Em princípio, utilizou-se a violência explícita, removendo-se cortiços das áreas consideradas “nobres”. Ao mesmo tempo, o Código de Posturas santista, aprovado em 1897, estabelecia um perímetro urbano, dentro do qual não poderiam ser edificadas construções mais modestas.
Então, a “solução” habitacional encontrada pela população de baixa renda foi a construção de chalés, em áreas de encostas, ou inundáveis, sem qualquer infraestrutura. Nestas áreas, os terrenos eram baratos e podiam ser adquiridos ou alugados pelos trabalhadores.
Mas na medida em que a cidade crescia em direção à orla, os chalés também passaram a ser objeto de erradicação. As primeiras leis urbanísticas sancionadas no início do século XX, em Santos, passaram a proibir edificações de madeira em determinadas localizações, que passaram e interessar ao mercado imobiliário. Ao mesmo tempo, a nova legislação estabeleceu padrões construtivos inacessíveis à baixa renda, embora tenha havido isenções de impostos para construção de moradias para os mais pobres, mecanismo que nunca atingiu este objetivo, mas beneficiou construtores.
Posteriormente, o processo de segregação tornou-se mais sofisticado, utilizando-se a legislação urbanística como forma de garantir a exclusividade em determinadas áreas, consideradas de melhor localização pelas classes de alta e média-alta rendas, para nelas concentrar a maior parte dos investimentos públicos em manutenção e melhorias urbanas.
A forma como se deu a apropriação da legislação urbanística pelos interesses imobiliários pode ser lida nas entrelinhas das várias leis que estiveram em vigor no século XX. Podem-se destacar, especialmente, alguns fatores introduzidos pela legislação urbanística ao longo deste século, como responsáveis pelo processo de valorização imobiliária das áreas objeto desses instrumentos.
São alguns destes a introdução da figura do lote mínimo, em 1945, e a exigente e sistemática regulamentação dos chalés de madeira e outras modalidades de moradia popular, estabelecida por leis que dificultaram ou segregaram os chalés, a partir do final do século XIX, como foi o caso do mencionado Código de Posturas e da Lei N° 460, de 1911.
A introdução do lote mínimo foi um dos principais obstáculos ao parcelamento do solo urbano, em condições mais acessíveis à população de baixa renda. Essa limitação foi extremamente exagerada para uma cidade insular, com área reduzida, impelindo aos poucos a população pobre a buscar moradia nos morros, manguezais, várzeas inundáveis ou na outra margem do estuário, na ilha de Santos Amaro.
Ao mesmo tempo a perseguição aos chalés cerceou o acesso à moradia dentro das condições possíveis para essa população, em determinadas áreas da cidade, contribuindo também para a segregação de territórios por nível de renda.
Em vários dos instrumentos urbanísticos aprovados pela Câmara de Santos, no século passado, também podemos encontrar outros tipos de restrições às edificações de baixo custo, sejam por meio de índices urbanísticos limitadores do adensamento, seja por meio de exigências de utilização de determinados materiais e padrões de construção, ou mesmo pelo estabelecimento de dimensões mínimas de cômodos para as moradias ou da exigência de número mínimo de vagas para automóveis.
Destaco, dentre estes instrumentos, a fixação de um lote mínimo de 300 m², pelo Plano Diretor Físico de Santos, de 1968, que a meu ver foi decisivo para a expulsão da população pobre para as palafitas da Zona Noroeste e para os municípios vizinhos.
Toda esta dinâmica segregacionista que utilizava a legislação urbanística para criar territórios exclusivos para os que possuíam maior renda, resultou no estabelecimento de um padrão de urbanização horizontal de baixa renda, expandindo-se nas direções de São Vicente e Guarujá, na última metade do século XX.
Esta expansão foi responsável pelo surgimento do movimento pendular diário, também em direção a estas cidades, pois a maior parte dos empregos e serviços ainda estavam localizados em Santos.
Mesmo os planos focados na questão da mobilidade, como o Plano Regulador de Desenvolvimento e de Expansão de Santos, elaborado no final da década de 1940, pelo urbanista Prestes Maia, para a Prefeitura de Santos, eram excessivamente direcionados para os investimentos no sistema viário, ignorando quase que completamente a questão crucial da localização das moradias dos trabalhadores.
Somente com as discussões do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, na segunda metade da década de 1970, as questões da densidade demográfica e do esvaziamento da área central entraram na agenda do planejamento municipal de Santos. Mas este é assunto para amanhã.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Remoções na Entrada da Cidade: o que houve com o Conjunto Habitacional da Prainha do Ilhéu?

APA Santos Continente: reavivando a memória

Como as avenidas morrem