Foi tudo planejado (parte V)


Nos outros posts da série, vimos como o planejamento urbano implementado na Baixada, sobretudo em Santos, por ação ou por omissão, foi decisivo para a criação de territórios segregados, junto às orlas marítimas, onde as elites fixaram residências. Por outro lado, em localizações distantes das áreas mais bem providas de infraestrutura e serviços, fixavam-se as famílias de baixa renda, que migraram para a região ou eram expulsas das áreas mais "nobres" de Santos e São Vicente. Neste contexto, a imensa maioria da população regional já habitava áreas insalubres e com risco ambiental, nas últimas décadas do século XX.
Na virada da última década do século, pela primeira vez, uma coligação de esquerda assumiu a prefeitura de Santos e tentou implementar formas de planejamento mais democráticas.
Ao assumir a Secretaria de Planejamento de Santos (Seplan), a arquiteta Lenimar Rios, que já atuara na produção do PDDI 76/78, montou uma equipe, a qual passei a integrar, voltada para a revisão da legislação urbanística excludente e para a implantação de um arcabouço institucional e legal, marcado pela democratização da atividade de planejamento, inserindo na agenda municipal a questão da sustentabilidade ambiental e a preservação do patrimônio cultural.
A visão de cidade, que antes privilegiava as áreas mais ricas, passou a compreender o município como um todo, inclusive no tocante à articulação metropolitana, até então inexistente. O eixo de atuação prioritária da Prefeitura rapidamente se deslocou para as áreas mais carentes, com a descentralização da administração, consolidada pela criação das administrações regionais da Zona Noroeste, Morros e as coordenadorias das áreas Central e Continental.
Foram tempos extremamente ricos em termos de contribuição para o planejamento municipal e regional. Neste período destacam-se como marcos legais a lei das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), a lei da Área de Proteção Ambiental (APA) Santos-Continente, o novo Código de Edificações e o Plano Viário, que procurava fazer uma revisão do Plano Regulador, de Prestes Maia.
Mas a contribuição mais importante para a formação de um arcabouço legal mais inclusivo, na área de planejamento, era a revisão do Plano Diretor de 68, já em grande parte modificado, na década de 1980, para facilitar a atuação do mercado imobiliário em crise.
Mas foi justamente a crise econômica, que se agravara no início da década de 1990, que mais contribuiu para impedir o aprofundamento das reformas na legislação urbanística santista. Com a introdução das políticas neoliberais de Collor e FHC, e as privatizações da Cosipa e do Porto, o desemprego regional aprofundou-se e a crise no mercado imobiliário santista, já fortemente estagnado nas décadas anteriores, formou um caldo de cultura extremamente reativo a mudanças na legislação, no seio das categorias profissionais vinculadas ao mercado imobiliário.
As propostas avançadas apresentadas pela equipe da Seplan, que tinham como carro chefe o instrumento conhecido como “solo criado”, foram sistematicamente repelidas pelos representantes do mercado. Até mesmo a criação de alíquotas diferenciadas de Imposto Predial e Territorial Urbano, ocorrida na administração do prefeito David Capistrano Filho, foi contestada e declarada inconstitucional.
Estes esforços, na reforma do marco urbanístico, foram parcialmente malogrados, devido à falta de sustentação adequada na esfera legal federal, uma vez que a regulamentação do artigo 182 da Constituição, que introduz o princípio da função social da propriedade urbana só foi regulamentado em 2001, por meio do Estatuto da Cidade.
Até mesmo o projeto de novo Plano Diretor, mais palatável ao setor imobiliário, enviado à Câmara pelo prefeito David Capistrano, em 1995, foi sequer apreciado. Os maiores avanços do período foram mesmo a criação das administrações regionais; a implementação do programa das ZEIS, que garantiram a fixação de milhares de famílias nos Morros e Zona Noroeste; o início da implantação da APA, que impediu a degradação da Área Continental e a atuação do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos (Condepasa), que impediu a destruição de grande parte de nosso patrimônio arquitetônico.
Mas em meio ao aprofundamento do neoliberalismo e com os efeitos das privatizações assolando a região, os ventos políticos viraram novamente. Em 1997, uma coalizão conservadora assume a Prefeitura de Santos e realiza a revisão do Plano Diretor de 68, ampliando drasticamente o padrão verticalização rica x horizontalização pobre. O testemunho desta mudança está estampado tragicamente no skyline santista. Mas esta história fica para amanhã.

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