Foi tudo planejado (parte VI)

Prosseguindo com a recuperação da história do planejamento urbano em Santos e a avaliação de suas consequências para a mobilidade da Baixada Santista, e antes de entrar no mérito das mudanças mais recentes, é importante retomar, também, a história desta atividade nos demais municípios do centro da região.
Por implicações históricas, que aqui não vou aprofundar, esses municípios não contam com uma regulação urbanística em igual magnitude e detalhamento como Santos dispõe.
Lembro que os territórios de Guarujá e Cubatão, em determinados períodos, pertenceram a Santos e sob suas leis foram administrados. São Vicente, embora seja um município mais antigo que Santos, sofreu um processo de estagnação mais longo, o que talvez explique o fato de sua legislação urbanística ter-se consolidado apenas na década de 1950. Em Praia Grande, a atividade de planejamento surgiu posteriormente, a reboque da intensa atividade imobiliária, a partir da década de 1970.
A começar por São Vicente, é interessante destacar que a maior parte de sua área insular está situada “atrás” do maciço central de morros e da ferrovia, em áreas menos valorizadas turisticamente, o que possibilitou o estabelecimento ali de uma numerosa população de baixa renda, cujo vínculo em termos de trabalho é maior com os municípios de Santos e Cubatão, em função do Porto, do setor terciário santista ser mais expressivo e do Parque Industrial cubatense.
Esta característica, em especial quanto à maior acessibilidade aos imóveis, moldou socialmente a população vicentina e facilitou o surto migratório proveniente de Santos, após a década de 1960.
Outras características específicas de São Vicente, que merecem destaque, são o baixo nível de ocupação de suas encostas, em função das declividades, e a ocupação da área continental, por população de baixa renda, possibilitada pelas ligações viárias com a área insular.
A primeira lei urbanística de São Vicente foi o Código de Obras, de 1956. Décadas mais tarde, já durante a crise econômica pós-regime militar, foram sancionadas a lei n° 2025/85, que estabeleceu normas de ordenamento da ocupação do município e de uso do solo da área insular, e a lei nº 2061/86, que definiu e delimitou as Zonas Urbanas, Zonas Especiais, Zonas de Preservação Ambiental, Zona Rural da Área de Samaritá e o uso do solo da área continental. Em 1999, foi aprovado o Plano Diretor, com alguns conceitos bem semelhantes ao Plano Diretor de Santos, de 1998.
O Código de 1956 foi elaborado, provavelmente, pela necessidade de controlar o crescimento da cidade, que já estava a exigir uma regulação mais efetiva. De forma bem parecida com o que ocorrera com a legislação urbanística santista, da primeira metade do século XX, esta lei procurou fixar um padrão edilício menos acessível às classe populares. Além das precauções de inspiração sanitária, havia uma preocupação com a questão dos incêndios, o que restringiu muito a construção de casas de madeira, que eram mais acessíveis, então.
A partir da aprovação desta lei, a orla da Praia de Itararé pode verticalizar-se e, com a aprovação da Lei n° 867/62, a Ilha Porchat também, desfigurando a bela paisagem  natural desta parte da orla, mais próxima a Santos. Este processo possibilitou que o paredão criado na orla santista se estendesse pela orla vicentina, uniformizando os graves problemas advindos deste modelo de ocupação.
Assim, o Código de 1956 garantiu a apropriação da orla marítima ao chamado turismo de segunda residência, ou turismo balneário, tal como ocorreu com Santos em igual período. Por outro lado, não se procurou incentivar o estabelecimento de uma rede hoteleira na cidade. O grande filão passava a ser a exploração imobiliária máxima possível (ainda não se utilizava fundações profundas) dos terrenos junto ao mar.
Ao mesmo tempo, afastava-se as construções modestas para as áreas mais distantes da orla, no que certamente a lei obteve inteiro sucesso, pois o padrão de urbanização em São Vicente passou a apresentar um imenso contraste, desde então. Ao longo das praias de Itararé e Gonzaguinha, de paisagem belíssima, edificou-se a mesma “muralha que cerca o mar”, que surgiu junto à orla de Santos, tomando-se emprestada a expressão cunhada pela geógrafa Odete Seabra.
Na orla vicentina, o padrão de parcelamento do solo era o de lotes de maior dimensão, possibilitando maior verticalização. Ao passo que no restante da cidade, com algumas exceções, a tônica era o pequeno lote e edificações que raramente ultrapassavam o segundo pavimento.
A vila, o conjunto de casas geminadas e, em menor número, o “chalé” de madeira, foram circunscritos às áreas mais distantes da orla e do centro, sobretudo à área ao norte da linha férrea que, tal como ocorreu em Santos, passou a constituir-se em limite real entre áreas mais e menos valorizadas.
A Lei nº 2025, de 1985, que estabelecia normas de ordenamento da ocupação do território de São Vicente e uso do solo da área insular, na verdade abrangia as demais áreas do município localizadas no continente, até que no mesmo ano foi aprovada e sancionada a Lei nº 2.061, que dispunha sobre o uso do solo da área rural de Samaritá.
Esta lei, surpreendentemente, na área que compreendia os morros junto à orla do Itararé, admitida residências, embora fosse área de difícil aproveitamento, pois na maior parte a declividade é alta, o que impedia a aprovação de qualquer parcelamento.
Em Samaritá, onde já estavam consolidados loteamentos com baixo nível de oferta de equipamentos, infraestrutura e serviços, seria permitido parcelar, implantando lotes com área mínima de 125 m² e frente mínima de 5 m, sendo que, no geral a lei permitia parcelamentos com lotes de área mínima de 250 m² e frente mínima de 10 m.
econômicas ou edificações de madeira. Na verdade, o que mais se aproxima de uma moradia tipicamente popular, são as construções conjugadas, popularmente conhecidas como geminadas, que não eram admitidas na orla marítima, centro e Ilha Porchat. Mesmo assim, a área mínima admitida para um lote era 125 m², conforme previsto no inciso II, do artigo 4º, da Lei Federal de Parcelamento do Solo, bem inferior ao exigido pelo Plano Diretor de Santos, de 1968.
A Lei nº 2.061, de 1985, provavelmente atendia à pressão de empreendedores imobiliários, que intensificavam seus investimentos na área continental, sobretudo em Samaritá. São dessa época grandes loteamentos como o Conjunto Residencial Humaitá e o Jardim Rio Branco.
A ocupação desta área e das áreas ambientalmente frágeis da área insular foi fundamental como alternativa habitacional da população de baixa renda, com vínculos de trabalho em Santos e em Cubatão. Assim, na ausência de uma política habitacional acessível, a oferta de terra barata, em loteamentos desprovidos de quase toda a infraestrutura, foi a saída para grande parcela da população da Baixada Santista. No entanto, a questão do transporte dos moradores dessa região, pela distância enorme entre residência e trabalho, tornou-se crucial e um problema político de grandes dimensões para São Vicente e Santos. A espera de um VLT que nunca chega, a população das áreas mais pobres de São Vicente enfrenta sérios problemas de mobilidade, originados nas decisões locacionais amparadas em um urbanismo segregacionista e irresponsável.
Nas décadas de 1990 e 2000, a legislação urbanística de São Vicente seguiu por caminhos semelhantes aos trilhados por Santos, reforçando a verticalização da orla e estabelecendo algumas ZEIS, que possibilitaram a implementação de planos de urbanização de favelas, executados em velocidade sempre inferior à necessária. Contudo, a execução da política habitacional vicentina, a meu ver, enfrenta desafios muito maiores que a santista, em função do orçamento municipal ser mais restrito e o nível de precariedade muito superior.
No próximo post da série, comento a legislação urbanística de Guarujá.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Remoções na Entrada da Cidade: o que houve com o Conjunto Habitacional da Prainha do Ilhéu?

Como as avenidas morrem

APA Santos Continente: reavivando a memória