Foi tudo planejado (parte VIII)


Dando sequência à série de posts que tratam do vínculo entre planejamento urbano, segregação socioespacial e redução da mobilidade da Baixada Santista, passo a examinar o caso de Cubatão.
Como bairro de Santos, antes de sua autonomia em 1959, Cubatão estava submetida à legislação santista. Foi apenas em 1969 que foi sancionada a Lei n° 776, que dispunha do uso do solo do Município. Essa lei vigorou até 1996, quando foi sancionada a Lei n° 2.365, que estabelecia o novo Plano Diretor de Desenvolvimento do Município, elaborada pela FUPAM/FAUUSP.
Este plano foi rapidamente revogado, seguindo a sina de vários planos de municípios da região, em função de questões políticas, relacionadas às restrições para ocupação do território, sendo que, em 1998, foram sancionadas as leis n° 2.512, que instituiu o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado; n° 2.513, que disciplinou o Parcelamento, uso e ocupação do Solo; e n° 2.514, que instituiu o Código de Obras e Edificações.
Essas últimas leis vigoravam até o ano passado. Não sei se já foram revistas, mas a Prefeitura estava se preparando para fazê-lo.
A Lei n° 776/69, que dispunha do uso do solo do Município, foi sancionada durante o regime militar, quando Cubatão era área de segurança nacional. A lei delimitou a zona urbana, correspondente, a aproximadamente ao atual centro e bairros contíguos como Vila Nova, Vila Natal, e ainda, os mais próximos de Santos, como Casqueiro, Ilha Caraguatá, Nhapium e Saracura.
A lei declarou que, na faixa de terreno entre a cota 100 m da Serra do Mar e a margem esquerda do Rio Cubatão, ao longo dos eixos das rodovias Cubatão - Pedro Taques e Piaçaguera-Guarujá, todas as áreas habitadas estavam “em extinção a longo prazo”. A Vila São José, também conhecida como Vila Socó, favela construída sobre um oleoduto da Petrobrás, paralelamente à Via Anchieta, figurava como sendo um desses núcleos fadados à extinção. Trágica e ironicamente, esta favela veio a ser destruída, em fevereiro de 1984, quando um grande incêndio no oleoduto ceifou a vida de mais de 99 moradores, atingindo 470 moradias, na maior tragédia do século XX, que envolveu um assentamento subnormal, na Baixada Santista. Os moradores que sobreviveram foram transferidos para uma área próxima, que foi urbanizada.
A mesma lei excluía do rol dos assentamentos passíveis de extinção as vilas residenciais pertencentes às próprias indústrias, “desde que comprovadamente não existam no local condições nocivas à saúde”.
O zoneamento contido nesta lei revelava a intenção de constituir em algumas áreas mais centrais um território de maior exclusividade. Ao contrário de Santos, nas zonas comerciais não era vedada a construção de residências, apenas havia limitações ao aproveitamento do lote usado para tal fim.
Na Zona de Possível Urbanização – ZPU, que correspondia, aproximadamente às áreas a oeste da Via Anchieta, entre a Serra do Mar e a Vila Natal; e também, a leste da mesma rodovia - entre a Vila Nova e o Rio Casqueiro - e entre a linha da Rede Ferroviária federal, de forma bastante subjetiva, a lei remetia a edição de decreto para a futura regulamentação dos usos permitidos.
Na Zona Industrial – ZI, que correspondia, aproximadamente, à faixa de terreno entre a cota 100 m da Serra do Mar e a margem esquerda do Rio Cubatão, ao longo dos eixos das rodovias Cubatão - Pedro Taques e Piaçaguera – Guarujá, foram admitidas indústrias pesadas, inclusive as “nocivas, incômodas e perigosas para a comunidade”, bem como serviços complementares às atividades industriais.
Quanto à ocupação, na ZUPP seria permitida taxa de 66% da área total do lote, com recuos frontais de 4 m. Nos lotes de esquina, onde o comércio era permitido, a taxa de ocupação poderia ser excedida em 10%. A altura dos edifícios foi limitada em três pavimentos, admitindo-se um quarto, quando o térreo fosse destinado exclusivamente como garagem. Nas zonas comerciais a altura foi limitada em 37 m.
Nas Disposições Gerais, a Prefeitura ficava “desobrigada de estender os serviços públicos e também de conservar os loteamentos para fins residenciais e de construções de qualquer natureza”. Tal dispositivo demonstrava a clara disposição do poder público de ignorar suas responsabilidades sobre o já então grave problema do crescimento de assentamentos subnormais.
Observamos que esta lei não estabelecia dimensões de lotes, nem critérios para parcelamento do solo, questão que foi regulamentada posteriormente. Assim, podemos afirmar que, se comparada a legislação urbanística em vigor, à existente na mesma época, nos demais municípios centrais da RMBS, inclusive Guarujá, a Lei n° 776 era extremamente simples e muito menos detalhada, demonstrando não haver em Cubatão, uma preocupação tão marcante em criar territórios de exclusividade, quanto houve nas cidades litorâneas.
Isto se deve, possivelmente, ao fato de que o município não possuísse uma classe média tão expressiva, quanto os demais municípios centrais da região. No entanto, da mesma forma que nestes municípios, mas em maior grau, ignorava-se a questão da habitação para as classes populares, problema de extrema gravidade na Cubatão da década de 70, em que diversos núcleos já haviam se consolidado e estavam em franca expansão, como a Vila Parisi, próxima à COSIPA; os bairros Cota, na Serra do Mar; e a Vila dos Pescadores, entre a linha da Rede Ferroviária Federal e o estuário.
Portanto, pode-se concluir que ao se atribuir o papel de controlar a ocupação apenas na área onde atuava o mercado formal da cidade, declarando os assentamentos criados fora desses limites, como passíveis de extinção “a longo prazo”, a Prefeitura empurrava para um futuro incerto o enfrentamento das péssimas condições habitacionais da população de baixa renda, que era a maioria no Município. Ou seja, a legislação urbanística de Cubatão, na década de 60, fora concebida para a minoria de seus habitantes.
A legislação de 1998 procurou enfrentar este passivo, mas não introduziu instrumentos capazes de inverter a lógica de exclusão consolidada nas décadas anteriores, e agravada pela crise econômica dos anos 80 e 90.
Na verdade, foi apenas muito recentemente, que projetos de urbanização de favelas, como os da Vila Esperança e Vila dos Pescadores, bem como os de implantação de novos programas habitacionais, como o Serra do Mar, passaram enfrentar o grave problema habitacional.
Mas diferentemente dos demais municípios da região, Cubatão não possui orla marítima (talvez o mais semelhante a isto seja o Casqueiro), o que impediu a formação de um quadro de segregação tão marcante, territorialmente, quanto aos demais.

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