A arquitetura da propina
Artigo do arquiteto Hugo Segawa, publicado no Estadão de 27/5, dá o que pensar.
Boa leitura!
Boa leitura!
Na cidade, posições técnicas e estéticas são confrontadas pelo
jogo de interesses oculto no carimbo da repartição. Pagou, tá feito
O Estado de S.Paulo, 27 de maio de 2012.
HUGO SEGAWA
HUGO SEGAWA É ARQUITETO, PROFESSOR , TITULAR DA
FACULDADE DE ARQUITETURA , E URBANISMO
DA USP -
Dentro de um ano, mais
precisamente no dia 24 de maio de 2013, São Paulo poderá comemorar os 120 anos da criação do setor da Prefeitura hoje
conhecido como Aprov - Departamento de Aprovação
de Edificações. Foi a Lei nº 38 de 1893 que estabeleceu a
obrigatoriedade de submeter plantas de edificações novas ao exame por uma repartição municipal para autorização. Essa
efeméride seria irrelevante não fosse o noticioso da suspeita de que
um ex-diretor desse departamento
se locupletou no exercício da função.
Afinal,
para que se aprova uma planta? Na última década do século 19 mal existiam engenheiros e arquitetos numa cidade com ares provincianos.
Naquele decênio, a população paulistana quase quadruplicou, das cerca
de 65 mil almas em 1890 para 240 mil
habitantes na virada do século. A nascente elite cafeeira, ciosa de uma
urbanidade condizente no prelúdio de uma metrópole, tratou de criar uma Escola Politécnica para a formação de um quadro de
engenheiros. Tratou também de adotar
uma regulamentação que tomava emprestada uma inquietação das cidades europeias pós-Revolução Industrial: as condições sanitárias das habitações, com
o desenfreado crescimento demográfico. Sobretudo a habitabilidade das casas operárias, uma tentativa profilática
de regrar as mal-ajambradas
moradias da crescente população pobre compulsoriamente
periferizada.
A Lei Municipal nº 38
trazia como substrato uma normalização que focalizava a salubridade na construção de habitações operárias.
Procedimento que não atingiu seu objetivo: a velocidade e a
informalidade na construção das margens urbanas favelizadas ao longo do século passado desmontou a imposição original da aprovação de edificações. Todavia, como
teoricamente a lei valia para todos, o procedimento acabou contemplando o
conjunto de edificações que constituiu a paisagem de São Paulo desde então. Foi
instrumental, com maior ou menor propriedade, na conformação dos
espaços paulistanos.
Uma polêmica de 1946,
resgatada pela professora Anat Falbel em sua tese de doutorado, ilustra a
temperatura dos debates travados entre os servidores da aprovação de
plantas com os requerentes. No episódio, protagonizaram o arquiteto Lucjan Korngold (1897-1963), que
submetia a aprovação do projeto do edifício CBI, no Vale do Anhangabaú (no qual o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem a sede da fundação com seu nome), e os
técnicos municipais
encarregados do exame do projeto. Há uma acirrada discussão, na qual interferiu o
engenheiro-arquiteto Carlos Alberto Gomes Cardim (1899-1990): "Com relação ao partido adotado para a composição da
fachada tenho uma observação a
fazer. Como arquiteto que fui da Prefeitura, encarregado por muitos anos da
censura estética das construções, me habituei a analisar os projetos e olhar melhor a cidade como um conjunto
de edificações e não como um aglomerado de prédios isolados. E nesse
particular levanto minha dúvida quanto
ao efeito estético do projeto, pelo seguinte: o Parque Anhangabaú é um dos pouquíssimos recantos paisagísticos da
cidade, tem como prédios dominantes
o Teatro Municipal, Esplanada, Light, Prédio Matarazzo e os dois moles do Automóvel Club e Prefeitura. O prédio em questão deveria
respeitar a composição do
prédio da Light, Matarazzo ou Esplanada, que pode ser modernizadora, com grande
felicidade, pelo arquiteto que apresentou esse estudo. Não somos contrários ao estilo
moderno na arquitetura, e temos defendido em artigos e palestras a
arquitetura do edifício do Ministério da Educação, mas é preciso
ponderar que a grandiosidade das cidades estrangeiras vem do
equilíbrio do conjunto arquitetônico e o projeto em questão será uma nota dissonante na composição harmônica
formada no parque".
Os processos de aprovação nem sempre
foram calhamaços de despachos burocráticos. As posições técnicas e
estéticas eram anotadas e confrontadas numa dialética de interesses
e valores que extrapolavam o mero carimbo da repartição.
Hoje os empreendedores, incorporadoras e arquitetos
queixam-se do labiríntico e críptico processo de aprovação de
projetos. O aumento das complexidades seguiu o mesmo ritmo da afirmação dos
ofícios do engenheiro e do arquiteto, da exaltação da competência
técnica, das ações pela regulamentação profissional desde o início
do século passado. O arquiteto Adolfo Morales de los Rios Filho (1887-1973),
muito antes do estabelecimento do Conselho Federal de Engenharia,
Arquitetura e Agronomia, em 1933, defendia a regulamentação como
forma de determinar as atribuições, direitos e deveres dos
profissionais, "bem como a conduta dos mesmos em relação aos
colegas, aos clientes e aos profissionais da construção". Em
1930 ele propôs um código profissional que entrevia o que hoje
entendemos como o código de ética que rege o comportamento dos membros da corporação.
O esquecimento dos sentidos instauradores das
normas, a banalização dos procedimentos técnicos e o simplista entendimento
de que a aprovação de edificações é uma mera instância
da burocracia pública abrem flancos para abusos em nome do saber
corporativo. E fissuras para o poder técnico se perder nos desvãos da ética.
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