Gentrificação: os perigos da economia urbana hipster
Do site Archdaily, interessante reflexão acerca do processo de substituição de populações, segundo a classe social, nas cidades americanas.
Leia o original em: http://www.archdaily.com.br/br/758003/gentrificacao-os-perigos-da-economia-urbana-hipster
Gentrificação: os perigos da economia urbana hipster
Intervenção artística "Psychylustro".
Imagem © Knight Foundation [Flickr]
Nesse artigo, publicado originalmente em Al
Jazeera como "The peril of hipster economics",
a escritora e pesquisadora estadunidense Sarah
Kendzior escreve que a deterioração urbana em alguns bairros
das principais cidades do mundo se converteu lamentavelmente em um conjunto de
peças urbanas a serem "remodeladas ou idealizadas" pela
gentrificação.
Segundo a autora, estes bairros - carregados de uma
estética atrativa nostálgica e de uma enriquecedora "vida urbana" -
estimulam a chegada de novos residentes de alto padrão que procuram esse estilo
de vida em bairros historicamente associados as populações marginais - carentes
de serviços públicos e oportunidades de trabalho -, que acabam sendo
removidas para subúrbios pobres.
"Querem
mudar uma memória que outros já construíram. Isto é a economia hipster",
afirma Sarah.Intervenção artística "Psychylustro". Imagem © Knight Foundation [Flickr] |
No dia 16 de maio uma artista, um serviço ferroviário e uma agência
governamental gastaram 291.978 dólares para camuflar a pobreza aos olhos do
público.
Intitulado psychylustro, o projeto da artista alemã Katharina
Grosse é um trabalho em grande escala desenhado para distrair os passageiros da
companhia estadunidense Amtrak das dilapidadas construções e indústrias
fechadas ao norte da cidade de Philadelphia (Pennsylvania - EUA). A cidade
possui um índice de pobreza de 28% - o mais alto entre as principais cidades
dos Estados Unidos - com grande parte dele concentrado no norte. Em algumas
escolas básicas de North Philadelphia, quase todas as crianças vivem
abaixo da linha de pobreza.
Grosse associou-se ao Fundo Nacional de Artes
e a Amtrak para mascarar os infortúnios de North Philadelphia com uma deliciosa
vista. O jornal estadunidense The Wall Street Journal chama isto de
"lutar com arte contra a deterioração urbana". Liz Thomas, o curador
do projeto, o definiu como
"uma experiência que convida as pessoas a pensar sobre este espaço que
elas enfrentam todos os dias".
É óbvio que este projeto não está lutando realmente contra a
deterioração urbana, mas apenas contra a capacidade dos passageiros
de observá-la.
"Necessito do brilho da cor para aproximar as pessoas, para
estimular um sentido de experiência de vida e aumentar a sensação de presença",
afirma Grosse.
As pessoas segundo
a justificativa de Grosse e Thomas, não seriam aqueles que, de fato, vivem em
North Philadelphia e suportam o peso das suas próprias cargas. As pessoas são aquelas que podem permitir-se o luxo
de ver a pobreza através da lente da estética, à medida que passam por
ela.
Então, a deterioração urbana converte-se em um conjunto de peças
a serem remodeladas ou idealizadas. Isto é a economia hipster.
Em fevereiro de 2014, o diretor Spike Lee fez uma apaixonada crítica sobre
a gentrificação de Nova Iorque - caracterizada com desprezo
pelos meios de comunicação estadunidenses como um discurso retórico. Lee argumenta que um fluxo
dos "malditos hipsters" fez
com que os aluguéis subissem na maioria dos bairros da cidade, e por sua vez,
expulsaram as comunidades afro-americanas do lugar que uma vez chamaram de
lar. Na sua crítica, Lee apontou como na cidade aqueles serviços - ruins e
desativados por um longo tempo - repentinamente reapareceram:
"Por que é necessário um fluxo de novaiorquinos brancos no sul de
Bronx, Harlem, Bed Stuy e em Crown Heights para que os serviços melhorem? O
lixo não era recolhido todos os dias quando eu vivia no 165, Washigton Park
[...]. Então, por que este afluxo de pessoas brancas é necessário para
existirem melhores escolas? Por que agora existe mais proteção policial em Bed
Stuy e Harlem? Por que o lixo está sendo recolhido mais regularmente? (Sempre)
estivemos aqui!
Spike Lee foi julgado por muitos críticos da
cultura hipster (hipster-bashing),
incluindo o professor afro-americano John McWhorter, que afirmou que
"hipster" é uma "maneira disfarçada de dizer 'honkey'" (um modo ofensivo de chamar a
população estadunidense branca) e comparou Lee com o personagem televisivo
George Jefferson, por sua hostilidade aberta aos brancos.
Estes, que se concentram na gentrificação como uma cultura, ignoram que
as declarações de Lee foram uma crítica da localização racista dos recursos. As
comunidades afro-americanas, que se queixam das escolas pobres e dos serviços
públicos terríveis, percebem que estas queixas são
rapidamente ouvidas quando pessoas de renda mais alta se mudam
para esses bairros.
Enquanto isso, os residentes mais
antigos são tratados como impurezas na paisagem e abordados pela
polícia por incomodar os recém chegados.
"Não se preocupe, é só gentrificação".
Imagem © Sebastian Thiele [Flickr]
Os gentrificadores focam na estética, não nas pessoas. Porque
as pessoas, para eles, são a estética.
Os defensores da gentrificação atestam suas intenções ao afirmar
que "limparam o bairro". Os problemas que existiram no local
(pobreza, falta de oportunidades, pessoas que lutam por serviços públicos
negados) não desapareceram. Simplesmente foram deslocados para um novo
local.
Este novo lugar é geralmente um subúrbio pobre, que
carece de glamour para converter-se no
objeto de futuras tentativas de renovação urbana. Não existe uma história para
atrair os conservacionistas, porque não existe nada nos subúrbios pobres que
valha a pena preservar. Isto é degradação sem beleza, ruína sem
romantismo: casas de penhores, lojinhas, compra de dólares, moradias modestas e
contas vencidas. Nos subúrbios a pobreza parece banal e é esquecida.
Nas cidades, os gentrificadores têm a influência política para relocar
recursos e reparar a infraestrutura. O bairro é 'limpo" através da remoção
dos seus residentes originais. Os gentrificadores podem desfrutar o sol na
"vida urbana": a dilatada história, a nostalgia seletiva, a areia
cuidadosamente salpicada. Ao mesmo tempo, evitam a responsabilidade sobre
aqueles que foram deslocados.
Os hipsters querem
escombros com garantia de renovação. Querem mudar uma memória que outros
já construíram.
Renovação urbana no bairro deteriorado de Somerset,
Canadá. Imagem © steve [Flickr]
Em uma profunda análise de deslocamentos em San Francisco e seus crescentes subúrbios
empobrecidos, o jornalista Adam Hudson afirma que "a gentrificação é
uma economia de gotejamento aplicada
ao desenvolvimento urbano:a medida que um bairro é adequado às
pessoas ricas e predominantemente brancas, os benefícios se espalham a todos os
demais". Como a economia de gotejamento, esta teoria não é levada a cabo
na prática.
As cidades ricas como Nova Iorque e São Francisco
converteram-se no que o jornalista Simon Kuper chama de cidades cercadas (gated citadels):
"vastas cidades cercadas onde se reproduz um porcento".
As cidades do centro e do noroeste dos Estados
Unidos precisam de investimento dos seus conterrâneos costeiros, mas, por sua
vez, livraram-se do rápido avanço da economia hipster. Amortecidas por sua eterna pouca inovação
vanguardista, estas cidades de mudança lenta têm a possibilidade de tomar
melhores decisões. Decisões que valorizem as vidas das pessoas em vez da
estética do lugar.
Em um post publicado em
abril de 2014, Umar Lee - escritor de St. Louis (Missouri,
EUA) e taxista - lamentou o modelo econômico de serviços de baixos custos
que tentaram se estabelecer na cidade. Notando que afetam não somente os
taxistas, mas também os residentes pobres que não possuem nenhum automóvel nem
transporte público e dependem dos táxis que estão dispostos à atender bairros
perigosos, ele rejeita aqueles que se fazem passar por inovadores.
"Escutei vários jovens hipsters dizendo que são liberais no social e
conservadores no econômico, uma popular tendência na política
estadunidense", escreve. "Bem, odeio romper (esta ideia), amigo, mas
é a economia e o papel do Estado que definem a política. Se és economicamente conservador,
independentemente de quão irônico e sarcástico possas ser ou o quão
apertados sejam teus jeans, tu, meu amigo, és conservador..."
Umar Lee me contou que tem seu próprio plano
para tentar atenuar os efeitos negativos da gentrificação, o qual denomina
de "50-50-20-15":
todos os empregadores que iniciem negócios em bairros gentrificados devem ter
uma força laboral que está composta, ao menos, de 50% provenientes de minorias
étnicas, 50% de residentes do bairro e 20% de ex-presidiários. Os empregadores
devem pagar pelo menos 15 dólares por hora.
A gentrificação propaga o mito da incompetência nativa: essa gente
precisa ser importada para ser importante; e que um sinal do
"êxito" do bairro é a remoção dos seus residentes mais pobres. O
êxito real está em oferecer àqueles residentes os serviços e oportunidades que
por tanto tempo lhes foram negados.
Quando os bairros experimentam certo desenvolvimento comercial, a
prioridade dos trabalhos deve ser dirigida aos residentes locais que
lutaram longamente para encontrar empregos próximos que paguem um salário
digno.
Nos deixem aprender
com os erros de Nova Iorque e San Francisco, e construir cidades que
reflitam mais que apenas valores superficiais.
Cita: Kendzior,
Sarah. "Gentrificação: os perigos da economia urbana hipster"
[Gentrificación: los peligros de la economía urbana hípster] 30 Nov 2014. ArchDaily Brasil. (Trad. Camilla
Sbeghen).
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