Como as avenidas morrem
O caso da Avenida Conselheiro Nébias, em Santos/SP
Em “Como as democracias morrem” (Cia. das Letras), Steven Levitsky e Daniel Ziblatt alertam para a forma como as democracias contemporâneas não mais terminam com rupturas nos moldes de uma revolução ou de um golpe militar, mas se deterioram lentamente com o enfraquecimento de suas instituições. Sem pretensão de produzir um trabalho como o desses autores, chamo a atenção para a morte lenta da urbanidade em nossas cidades, em grande medida decorrente do impacto do uso de veículos motorizados. Como exemplo, analiso o fenômeno que ocorre em um dos mais importantes eixos viários de Santos/SP, a Avenida Conselheiro Nébias. Assim como algumas democracias contemporâneas, esta via está “morrendo” em alguns trechos, que aos poucos vêm se tornando inóspitos e repelentes à chamada mobilidade ativa, entendida como o deslocamento de pedestres e ciclistas. Esta “morte” ocorre, por decisões historicamente equivocadas do planejamento urbano e também por omissão de quem deveria planejar, em benefício da cada vez mais exagerada oferta de vagas de automóveis nos lotes.
O trabalho
“Evolução do espaço destinado a automóveis em relação a área total construída
dos edifícios de São Paulo”, de Leite Júnior, Alencar e John (2011), estimou
que, em 2010, o município de São Paulo, onde o requisito de número mínimo de
vagas existe desde os anos 1930, atingiu a proporção de 30% da área construída
total dos empreendimentos, destinados a espaços para automóveis, incluindo
vagas, acessos e áreas de manobra.
Infelizmente não se dispõe de dados
semelhantes para Santos, onde o requisito de número mínimo de vagas existe
desde 1950. Mas é possível que a tendência aqui não seja muito diferente.
Aliás, é importante mencionar que, em Santos, a oferta de vagas em
empreendimentos imobiliários é incentivada desde a década de 1970, quando as vagas passaram a não ser computadas para o cálculo da área construída máxima. Portanto,
mesmo quem não quer possuir automóvel, mas quer adquirir ou alugar um
apartamento, em Santos, tem que bancar compulsoriamente o custo do espaço para
automóvel. Claro que isso estabelece uma clivagem de renda em uma cidade cujo custo da moradia está ao alcance apenas da minoria. Felizmente, esta obrigatoriedade
para empreendimentos residenciais está para ser alterada na revisão da lei de
zoneamento atualmente em curso. Mas como se verá adiante, para atividades
econômicas não se cogita algo semelhante. Os prejuízos urbanísticos e
ambientais dessa omissão são aspecto central desta postagem.
Este
blogueiro, seus pais, avós e bisavós moraram na Avenida Conselheiro Nébias, em
diferentes endereços e épocas, o que certamente torna mais subjetivas as
análises apresentadas a seguir, em face da relação de afeto para com o
logradouro. O blogueiro morou primeiro em um predinho de três pavimentos, na
esquina da avenida com a Rua Matogrosso, onde hoje é uma drogaria, e
posteriormente em uma casa térrea ao lado, por quase três décadas, até meados dos
anos 1980, na extremidade leste do antigo loteamento da Cia. City. Assim foram
testemunhadas transformações importantes, dentre as quais destaca-se a
renovação urbana intensa, sobretudo pela verticalização e mudanças do uso do
solo, após a década de 1960, com a supressão contínua da arborização pública e
a retirada dos trilhos do sistema de bondes. Esta mudança do transporte público
ampliou o espaço livre para circulação de automóveis e resultou no incremento
da circulação de ônibus à diesel, aumentando efetivamente a poluição sonora e
atmosférica.
O sistema de bondes, inaugurado em 7 de setembro de 1870, com veículos ainda tracionados por muares, mas depois eletrificado, funcionou até 1971. Inicialmente ligava a “cidade” (atual área central) à parada da praia do Boqueirão, circulando pelo centro da pista única da Avenida Conselheiro Nébias. Assim, o sistema durou quase um século , com impactos à ambiência urbana muito inferiores aos dos ônibus à diesel. As linhas que circularam pela avenida foram as 4, 10, 32, 44 e 74. Com a retirada dos trilhos, em 1966, foi construído o canteiro central da avenida, entre a Rua Bittencourt e a Avenida Epitácio Pessoa. A via, antes pavimentada com paralelepípedos no trecho dos trilhos, foi asfaltada por completo. Também com baixo impacto ambiental, entre 1967 e 1996, circularam trólebus elétricos na avenida, as linhas 4, 40, 44 e 45, algumas das quais adotaram os mesmos números de antigas linhas de bondes, pois os itinerários eram semelhantes.
Neste prólogo,
a ênfase nas transformações do sistema de transporte público na avenida é
proposital, pois colabora para o desenvolvimento da argumentação apresentada
adiante, acerca do estado de degradação em alguns trechos da via, na
atualidade. A substituição do transporte público eletrificado, bondes e
trólebus, pelo motorizado, ônibus à diesel, foi acompanhada pelo vertiginoso
aumento da frota de veículos particulares motorizados, primeiro automóveis e
mais recentemente motocicletas, cuja utilização intensa vem contribuindo para
degradação da via, seja pelo fluxo, seja pela oferta de espaços de
estacionamento fora e dentro dos lotes. No último caso, a oferta de vagas tem
um efeito direto sobre o desenho urbano do logradouro e consequentemente sobre
a relação entre pedestres e edificações, questão a ser aprofundada adiante.
Antes denominada Rua da Liberdade e, até 1887,
Rua Octaviana, a Conselheiro Nébias (em amarelo na Figura 1) cruza a zona leste
da cidade, de norte a sul, ou melhor, de mar a mar, desde o cais do Porto, no
bairro do Paquetá, até a orla marítima, no bairro do Boqueirão, totalizando uma
extensão de cerca de 4,5 km. À partir da segunda metade do século XIX, a via
foi sendo estendida aos poucos, em função dos trilhos dos bondes, conforme se
observa pelos mapas da época,
ligando a “cidade”, o núcleo urbano de Santos, à praia da “Barra do Boqueirão”,
onde se situavam chácaras e casas de veraneio da elite econômica local e
paulistana. Mas esta extensão foi descontinua, pois o parcelamento do solo da
planície entre o núcleo urbano original de Santos e a orla ocorreu por
“saltos”. Posteriormente, estas chácaras foram substituídas pelos primeiros
edifícios verticais da orla, voltados ao turismo de segunda residência.
Fonte: Elaboração do blogueiro, 2022.
A morfologia
da Avenida Conselheiro Nébias
Em seu
primeiro trecho, na área central, onde a cidade nasceu, entre a Rua Antônio
Prado, no cais do Porto e a Rua Bittencourt (em laranja na Figura 1), a via é
denominada Rua Conselheiro Nébias. Neste trecho, atualmente com apenas um
sentido do trânsito em direção ao cais, morfologicamente, a via tinha a feição
típica do viário da colônia e do império, com largura estreita de alinhamento a
alinhamento, de cerca de 12,0 m, mantida até hoje, com calçadas estreitas e ladeada
por edificações construídas predominantemente no alinhamento frontal e sem recuos laterais, em
lotes com frente pequena e grande profundidade (Figura 2).
Figura 2. Trecho inicial da Avenida Conselheiro Nébias
Fonte: Acervo do professor e pesquisador santista Francisco Carballa.
A via adquire
sua feição predominante, com duas pistas e largura de cerca de 22,0 m, até seu
final, na orla marítima. Porém, em seu segundo trecho, até o eixo das Avenidas
Gen. Francisco Glycério e Afonso Pena (em vermelho na Figura 1), onde cruza os
bairros Vila Mathias e Encruzilhada, a avenida é ladeada por edificações
majoritariamente dotadas de recuo frontal de 7,0 m e recuos laterais variáveis.
A Lei nº 82, de 12 de agosto de 1896 [1],
uma das primeiras leis urbanísticas do município, fixou este recuo à partir da
confluência com a Rua Luiza Macuco, na Vila Mathias. E a Lei nº 489, de 3 de
janeiro de 1912, estendeu esta exigência, desde a Avenida Campos Sales, 435,0 m
ao sul da Rua Bittencourt, até seu final, na orla. Portanto, criou-se um
desajuste no desenho urbano, posto que a exigência de recuo frontal variou até
2018, quando entrou em vigor a Lei Complementar nº 1.006, de 16 de julho
(atualmente em revisão), que instituiu o atual Ordenamento
do Uso e da Ocupação do Solo na Área Insular de Santos. Esta norma
estabeleceu a exigência de recuo frontal de 7,0 somente à partir do cruzamento
com a Rua Joaquim Távora, a cerca de 1.230,0 m ao sul da confluência com a Rua
Bittencourt. Evidentemente, esta variação no regramento do recuo frontal produziu
e no futuro ampliará a falta de
uniformidade do alinhamento construtivo frontal, agravado pela flexibilização
deste recuo para estabelecimentos do tipo bar, restaurante ou padaria. Assim, este
segundo trecho passou a apresentar recuo frontal com variações, ora
aproximando, ora afastando os pedestres das frentes dos estabelecimentos
comerciais que passaram a dominar a via desde meados do século XX. Em 1945, o
Decreto-lei nº 403, de 15 de setembro, que instituiu o Código de Obras do
Município, manteve o recuo frontal de 7,0 m para a Conselheiro Nébias, entre a
Avenida Campos Sales e o final da via.
Estes
dispositivos foram responsáveis pela configuração dos casarões da avenida,
isolados no lote e com muros baixos no alinhamento frontal. Este desenho
(Figura 3) conferiu um aspecto bastante diferenciado da primeira fase de
urbanização ao longo da via, quando o conjunto construído não possuía
afastamentos frontais e laterais. Os casarões foram responsáveis pelo perfil
residencial elitista da via, que começou a se transformar à medida em que a
população de classe média deixava a área central, para habitar nos bairros da
orla em predinhos típicos das décadas de 1940 a 1960 ou em edifícios com dez ou
mais pavimentos. Em 1956, a Lei nº 1.831, de 9 de maio, que alterou o Código de
Obras, transformou a Avenida Conselheiro Nébias em Núcleo Comercial desde a Rua
Heitor de Moraes até a orla, no Boqueirão, incorporando o trecho sem canteiro
central, em que passou a ser permitido edificar até 52,0 m de altura,
consolidando o caráter vertical e de centralidade terciária desta área do
bairro.
Figura 3.
Casarão da Avenida Conselheiro Nébias, 586, Boqueirão
Fonte: https://saopauloantiga.com.br/casarao-conselheironebias586/
Em 1968, foi
aprovado o Plano Diretor Físico do Município, Lei nº 3.529, de 16 de abril.
Esta norma, de autoria dos arquitetos Heitor Ferreira de Souza e Oswaldo
Pereira Gonçalves, consolidou o caráter modernista da legislação urbanística de
Santos, acrescentando o coeficiente de aproveitamento aos índices urbanísticos.
O Plano Diretor também consolidou o zoneamento de uso funcional, estabelecendo
a divisão da cidade em zonas e afetando a Avenida Conselheiro Nébias. A via
cruzava quatro zonas distintas: Zona Comercial Industrial (ZCI), Zona Comercial
Residencial (ZCR), Zona Residencial (ZR) e Zona Turística (ZT).
A primeira, na
área central, por seu caráter extremamente permissivo, especialmente quanto às
atividades portuárias, foi responsável por acelerar o processo de degradação
dos bairros Paquetá e Vila Nova, antes habitados pela burguesia santista, mas
já então em processo de esvaziamento. O atual aspecto da via neste trecho
reflete bastante este zoneamento, em face do tipo de terciário que se instalou,
em grande parte incompatível com o uso residencial. Este processo foi analisado
detalhadamente por Barros e Carriço (2019). A ZCR, embora permitindo o uso
residencial, não se caracterizou como tal ao admitir um tipo de terciário de
maior impacto ambiental, de alcance regional e altamente atrativo de trânsito.
A ZR, posteriormente subdividida em ZR e Zona Residencial Especial (ZRE), esta
o trecho da ZR nos bairros da orla, fixou o caráter elitista desta área que já
se verticalizava desde a década de 1940, incentivando um padrão de edifícios
verticais com elevador, com unidades bem menos acessíveis aos extratos mais
baixos da classe média do que os populares predinhos das décadas anteriores. Quanto
ao recuo frontal, este plano estabeleceu, inicialmente, 10,0 m para as vias
principais. Porém, este dispositivo foi alterado em 1984, voltando a vigorar os
7,0 m para a Avenida Conselheiro Nébias, sem distinção de trecho. Este Plano
Diretor foi revogado parcialmente em 1998, pela Lei Complementar nº 312, de 24
de novembro, que disciplinou o Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo na Área
Insular de Santos, e voltou a estabelecer a exigência de recuo frontal de 7,0 m
para a avenida, desde a Rua Bittencourt até seu final.
Portanto,
foram várias as alterações no recuo frontal, em trechos distintos da Avenida
Conselheiro Nébias, contribuindo para a feição variada de seu conjunto
edificado, tornando bastante variável a distância entre as edificações e a
calçada pública. Seu trecho inicial, cuja situação mais detalhada dos recuos
frontais será analisada adiante, foi afetado por outros tipos de dispositivos
legais urbanísticos. Porém, para o restante da via já aberto no início do
século passado, ao sul da Rua Bittencourt, destaca-se a Lei nº 322, de 28 de
agosto de 1908, que proibiu construções com testadas inferiores a 8,0 e
estabeleceu “áreas livres laterais” não inferiores a 3,0 m. A Lei nº 331, de 21
de outubro de 1908, reduziu a exigência de testadas mínimas para 6,0 m e os recuos
laterais mínimos para 2,0, neste trecho. Este dispositivo foi estendido ao
trecho restante até a praia pela Lei nº 444, de 11 de janeiro de 1911.
Evidentemente essas normas demarcaram o aspecto elitista deste trecho da via,
dominado por casarões isolados no lote, ocupados pela elite santista e mais
tarde adaptados para atividades comerciais, em função da transformação da via
em um corredor terciário, decorrente do processo de consolidação da
pendularidade centro-orla, que surgiu à medida em que a população de classe
média abandonava a área central para se fixar na orla.
Em seu trecho
final, a via apresenta largura semelhante ao restante do trecho ao sul do
cruzamento com a Rua Luiza Macuco. Este trecho inicia-se no cruzamento com o
eixo das Avenidas General Francisco Glycério e Afonso Pena (em vermelho na
Figura 1), paralela à faixa da antiga linha férrea da Fepasa (antiga E. F.
Sorocabana), atual linha do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). Esta parte da via
atravessa o bairro do Boqueirão e termina no trecho sem canteiro central, com
cerca de 200,0 m de comprimento, entre o eixo da Rua Gov. Pedro de Toledo e
Avenida Epitácio Pessoa e o eixo das Avenidas Vicente de Carvalho e Bartolomeu
de Gusmão, na praia do Boqueirão.
Mas ao
contrário do que ocorre na Vila Mathias, Encruzilhada e trecho inicial do
Boqueirão, esta parte final é totalmente verticalizada, pois nas quadras mais
próximas ao mar, desde os anos 1940, a atividade imobiliária voltada para o
turismo balneário produziu um parque de edifícios de veraneio, sobre o qual a
geógrafa Odete Seabra se referiu como “a muralha que cerca o mar”[2].
Valorização
imobiliária, legislação urbanística e degradação urbana
Primeiro a
linha férrea e hoje o VLT demarca a valorização imobiliária na zona leste da
área insular do município, dividida entre os bairros da orla marítima, os
bairros intermediários e os bairros centrais. Inversamente à cronologia da
ocupação, os valores mais altos dos imóveis ocorrem de acordo com a proximidade
da orla. Portanto, é em seu último trecho que a avenida cruza a área mais
valorizada.
Há muitos
anos a Avenida Conselheiro Nébias apresenta evidências de degradação urbana em
alguns pontos. Vale citar, como exemplo, o trecho inicial, cujo conjunto de
imóveis coloniais foi primeiramente substituído pelo conjunto de arquitetura
eclética e posteriormente renovado, apresentando a feição que tem hoje. Durante
a formação do conjunto colonial, do qual não há mais vestígio, e depois do
eclético, não incidia legislação de recuos a qual só passou a vigorar à partir
da lei de 1896. Em 27 de dezembro de 1951, passou a vigorar a Lei nº 1.316, o
Plano Regulador da Cidade, que aprovou relatório da Comissão do Plano da
Cidade, consolidando algumas leis urbanísticas e no caso da Conselheiro Nébias
determinando o alargamento da via em ambos os lados, entre o cais e a Rua
Bittencourt. Esta diretriz foi modificada em 1994, com a Lei Complementar nº
151, de 13 de dezembro de 1994, que limitou o alargamento ao alinhamento oeste
da via. Porém, o resultado, em termos morfológicos já havia sido desastroso,
nos casos em que imóveis foram substituídos e, além disso, a Prefeitura exigiu
que as novas edificações fossem construídas à partir do alinhamento previsto em
1951, criando uma série de “dentes” e tornando descontínuo o alinhamento
frontal do conjunto edificado (Figura 4). Além do “ruído” na paisagem urbana,
esta descontinuidade cria áreas de insegurança, na já esvaziada área central da
cidade, em especial durante períodos em que o comércio está fechado.
Adicionalmente, como se observa na Figura 4, os “recuos” frontais resultantes
da diretriz de alargamento, são utilizados como estacionamento dos
estabelecimentos localizados no trecho, ampliando a insegurança na circulação
de pedestres, neste caso no período comercial.
Figura 4.
Descontinuidade dos alinhamentos causada pela diretriz de alargamento
Fonte: Google
Earth, 2022.
No extremo
oposto da via, no trecho em que inexiste canteiro central, um interessante
conjunto arquitetônico modernista foi edificado, em ambos os lados, à partir de
1940, quando foi demolido o icônico Cassino Miramar [3] (Figura 5), construído em 1896
e situado no alinhamento leste deste trecho. O bico-de-pena de Lauro Ribeiro da
Silva, dá uma boa ideia da paisagem urbana radicalmente diferente, com relação
à que se produziu com a verticalização da orla, naquele trecho. À esquerda da
foto, destaca-se o famoso Parque Indígena, da chácara de Júlio Conceição, na
esquina da Avenida Conselheiro Nébias com a avenida da praia.
Figura 5. Hotel Cassino Miramar.
Fonte: NovoMilênio.
O conjunto
vertical, em ambos os lados da avenida, que veio a substituir o hotel-cassino e o Parque Indígena, é composto
por alguns exemplares relevantes do modernismo produzido em Santos, no período (Figuras
6 e 7). São destaques o edifício Taiuva,
do arquiteto Oswaldo Corrêa Gonçalves (1955) e o edifício São Domingos,
da construtora Ocian, concluído em 1961, no mesmo terreno do Cassino Miramar.
Figura 6.
Edifício Taiuva
Fonte: Arquivo.arq.br/projetos.
Figura 7. Edifício
São Domingos
Fonte: NovoMilênio.
Nas décadas
seguintes, assim como ocorreu com muitos outros edifícios localizados nas
avenidas da orla e em suas travessas, os térreos livres, mesmo aqueles com
comércio, foram sendo gradeados ou murados no alinhamento frontal, eliminando
paulatinamente a integração entre espaço público e privado. A consequência
desse fenômeno, concomitante ao aumento acelerado da frota de automóveis no
município, foi a degradação da vitalidade urbana que caracterizou grande parte
da orla de Santos. O aumento do fluxo de veículos e as restrições à circulação
de pedestres devido ao fechamento dos térreos livres e ao intenso acesso de
veículos das garagens dos edifícios foi, aos poucos, consolidando o perfil motorizado
dos deslocamentos nesta área. O trecho final da Avenida Conselheiro Nébias foi
seriamente afetado por esse processo. Com a retirada de circulação dos bondes,
em 1971, os veículos motorizados passaram a ocupar cada vez mais espaço. E com
a ausência de canteiro central nesta parte da avenida, o simples atravessar a
via tornou-se uma operação de risco para os pedestres. Aliás, este blogueiro
busca até hoje uma explicação para a recusa do município em construir o
canteiro central neste trecho, posto que a caixa da via (distância entre os alinhamentos
dos lotes frontais opostos) é praticamente igual ao do trecho entre a Rua
Bittencourt e este trecho.
No calçadão
do edifício São Domingos, a degradação foi ainda maior, sobretudo pela ocupação
cada vez maior por mesas de bares e restaurantes, com o fechamento dos acessos
de pedestres às portarias dos blocos do edifício e de veículos às garagens. Com
o advento das normas de acessibilidade, que tornaram obrigatória a construção
de rampas (Figura 5), a degradação
aprofundou-se. Obviamente, não pela necessidade de dotar o calçadão e portarias
dos edifícios de acessibilidade, mas pela pobreza das soluções arquitetônicas
adotadas. Em seu trecho final, na esquina com a Avenida Bartolomeu de Gusmão
(avenida da orla), observa-se o aspecto original do calçadão, com nível elevado
em relação à calçada pública, porém desimpedido para o deslocamento de
pedestres (Figura 8).
Figura 8.
Fonte: Google
Earth, 2022.
Figura 9. Trecho
do calçadão do Edifício São Domingos ainda em seu estado original
Fonte: Google Earth, 2022.
Além dos problemas relatados, no trecho intermediário da via, ao norte do Boqueirão, mais próximo ao eixo das avenidas Gen. Francisco Glycério e Afonso Pena, um novo processo de degradação, de dinâmica distinta, vem se desenvolvendo nos últimos anos. Este trecho, localizado entre as ruas Dagoberto Gascon e Lobo Viana, sobretudo na sequência de quadras do alinhamento leste da via, vem apresentando um fenômeno de redução da taxa de ocupação dos lotes (percentual do lote edificado no nível do terreno). Quase todos esses terrenos foram ocupados com edificações horizontais com atividades terciárias, com voraz ampliação do espaço de estacionamento, nas laterais e principalmente na parte frontal às edificações. A sequência imagens das Figuras 10 a 19 mostra com bastante clareza este processo. As fotos foram tiradas no início de uma manhã de setembro de 2022, portanto com os estabelecimentos fechados, visando destacar o enorme espaço não edificado, porém pavimentado, que caracteriza este fenômeno.
Figura 10. Estabelecimento no alinhamento leste da via, na esquina com a Rua Dr. Cesário da Mota.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
Figura 11. Estabelecimentos no alinhamento leste da via, na esquina com a Rua Dr. Cesário da Mota.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
Figura 12. Ambos os estabelecimentos no alinhamento leste da via, nas esquinas com a Rua Dr. Cesário da Mota.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
Figura 13. Estabelecimentos no alinhamento leste da via, no meio da testada de quadra entre as Ruas Dr. Miguel Presgreave e Dr. Cesário da Mota.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
Figura 14. Estabelecimento no alinhamento leste da via, no meio da testada de quadra entre as Ruas Dr. Miguel Presgreave e Dr. Cesário da Mota.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
Figura 15. Estabelecimento no alinhamento leste da via, no meio da testada de quadra entre as Ruas Dr. Miguel Presgreave e Dr. Cesário da Mota.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
Figura 16. Outros estabelecimentos no alinhamento leste da via, no meio da testada de quadra entre as Ruas Dr. Miguel Presgreave e Dr. Cesário da Mota.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
Figura 17. Estabelecimento no alinhamento oeste da via, no meio da testada de quadra entre as Ruas Goiás e Alberto Baccarat.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
Figura 18. Estabelecimento no alinhamento oeste da via, no meio da testada de quadra entre as Ruas Alexandre Herculano e Goiás.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
Figura 19. Concessionária de veículos no alinhamento oeste da via, no meio da testada de quadra entre as Ruas Alberto Baccarat e Machado de Assis.
Fonte: Foto do blogueiro, setembro de 2022.
As Figuras 10
a 12 mostram como o afastamento das edificações, com relação ao alinhamento
frontal, tem seu efeito agravado, quando o lote é localizado em esquina, com as
baterias de vagas de automóveis configurando um “L”, que distancia o
estabelecimento da calçada pública.
As Figuras 13
a 16 revelam como a sequência de estabelecimentos com oferta de vagas no recuo
frontal multiplica a aridez da ambiência urbana, desestimulando o caminhar,
posto que o tipo de atividade quase não atrai pedestres, nem para o consumo,
nem para a simples contemplação de vitrines, como ocorre em áreas comerciais
onde o recuo frontal inexiste. Este efeito de dissolução do urbano é reforçado
especialmente nos estabelecimentos das Figuras 13 a 15, afastados cerca de 30,0
m do alinhamento frontal. Este fenômeno evidencia, ainda, a ausência de
preocupação da Prefeitura com a arrecadação municipal, devido ao reduzido
adensamento construtivo do terciário implantado nos lotes.
O
posicionamento da edificação da Figura 17, com baixíssima taxa de ocupação,
oferece mais da metade da área do lote para estacionamento, também em forma de “L”,
da frente aos fundos, mesmo não estando o estabelecimento em esquina. Isto implica,
também, no rebaixamento de 100% da guia em toda a sua testada, o que limita o plantio
de árvores e possibilita o acesso de veículos em qualquer ponto da testada,
gerando insegurança para pedestres e ciclistas. O posicionamento da edificação
da Figura 18, embora permita o estacionamento no fundo do lote, o que em termos
de relação entre a calçada e o espaço edificado é mais interessante, também
possui estacionamento no recuo frontal e guia rebaixada em toda a extensão, apresentando
o mesmo inconveniente do caso anterior. Este caso é relevante, pois o terreno do
estabelecimento comercial é resultado do remembramento de dois lotes, antes
ocupados por antigas residências, sendo que uma foi inteiramente demolida para
a implantação da bateria de vagas ao sul da edificação atualmente existente.
Esta prática de aquisição de terrenos em áreas bastante valorizadas da cidade,
para demolição e oferta de vagas, tem se disseminado por vários bairros da
orla, inclusive em vias locais, onde estacionamentos não são permitidos.
A Figura 19
mostra a existência de uma concessionária de automóveis no setor urbano
analisado, tipo de atividade que deveria ser vedada em um logradouro onde se
deseja estimular o caminhar e o transporte público, posto que é um grande polo
atrativo de trânsito, com oferta de estacionamento na frente do lote e dois
acessos de veículos nas laterais. Além desses problemas, implica na necessidade
de estacionamento de carretas transportadoras de veículos, que produzem grande
impacto, mesmo sendo restrito a determinados horários.
A Figura 20
apresenta, esquematicamente, a sequência do alinhamento construtivo em ambos os
lados da avenida, no setor urbano em análise, revelando a falta de uniformidade,
a despeito da histórica exigência de recuo frontal de 7,0 m, assim como a
ociosidade dos espaços reservados para automóveis mesmo durante o período
comercial. O aspecto denteado dos recuos mostra com clareza o problema da
distância das atividades econômicas, com relação ao fluxo de pedestres na via,
com a única exceção de dois restaurantes localizados no térreo de um edifício
residencial, na esquina da avenida com a Rua Machado de Assis, ao lado da
concessionária. Estes casos de aproximação entre estabelecimentos e calçada
poderiam ter melhor resultado se os vidros não fossem escurecidos e se o
restaurante da esquina tivesse acesso pela avenida.
Figura 20.
Alinhamentos desuniformes e ociosidade de espaços para automóveis no setor
analisado.
Fonte: Elaboração do blogueiro sobre foto do Google Earth de agosto de 2022.
O aspecto desses empreendimentos com excessiva oferta de estacionamento cada vez mais se assemelha às atividades típicas de margens de rodovias, em áreas periurbanas, onde o terciário de maior porte costuma se instalar, em municípios preocupados em segregar os usos com maior impacto, por meio da legislação urbanística, afastando-os das áreas mais adensadas. É característico desses empreendimentos em áreas periurbanas a ampla oferta de estacionamento, pois localizam-se a grandes distâncias de áreas residenciais. Evidentemente, este não é o caso de bairros da área insular de Santos, onde habitam cerca de 99% da população do município. Em grande parte desta área, a legislação não apenas deixa de coibir esta modalidade de terciário, como incentiva a oferta de vagas de automóveis em edifícios verticais e obriga a oferta de um número mínimo de vagas em estabelecimentos comerciais de vários tipos. Neste aspecto, merece destaque uma das normas mais questionáveis, do significativo rol de leis deletérias da história do urbanismo santista, a Lei Complementar nº 528, de 18 de abril de2005. Partindo da crença de que a oferta de vagas de estacionamento reduz o impacto do trânsito, ao buscar, sem sucesso, retirar veículos estacionados das vias, esta norma cria a obrigatoriedade de oferta de um número mínimo de vagas de estacionamento dentro dos lotes, de acordo com o porte e tipo de atividade. Sobre esta questão ver o clássico trabalho de Donald C. Shoup, “The Trouble With MinimumParking Requirements” e, ainda, “Three major problems with parking minimums”.
Considerando
que polos atrativos de tráfego terão seus impactos urbanos reduzidos com a
oferta de estacionamento dentro dos lotes, a norma fixa proporção entre área
construída e número de vagas, estabelecendo suas dimensões e posições, de
acordo com a atividade, sem qualquer preocupação com a localização das baterias
de vagas no lote, nem com a localização e situação dos acessos de veículos com
relação à calçada.
Uma das consequências
mais deletérias desta lei é a ocupação do recuo frontal de antigas residências,
adaptadas para atividades terciárias, com vagas de automóveis, como se observa
em vários eixos viários da cidade, como nas três casas localizadas mais ao
norte do alinhamento leste do setor analisado, respectivamente números 621, 623
a 625 da Avenida Conselheiro Nébias (Figura 21). Na crença de que a oferta de
vagas atrai um público diferenciado, os proprietários de automóveis, o
afastamento da atividade com relação à calçada pública não contribui para a
atração de transeuntes, que poderiam ser potenciais consumidores. Além disso, o
entra e sai de veículos conflita com o trânsito de pedestres e ciclistas,
conturbando o trânsito da avenida, na faixa mais usada pelo transporte
coletivo, em função da necessidade de manobras. Este problema é maior nas ruas
cujo recuo frontal é de 5,0 m, que são os casos predominantes.
Figura 21. Residências
adaptadas para atividades terciárias com estacionamento no recuo frontal.
Fonte: Google
Earth, 2020.
Nos casos
relatados, chama a atenção o resultado urbanístico e ambiental da
obrigatoriedade de oferta de vagas para automóveis e a indiferença da
legislação quanto ao posicionamento destas e de seus acessos com relação ao
lote e à calçada. Para compreender as consequências e implicações urbanísticas
e ambientais, sugere-se a leitura do artigo “To Tackle Climate Change, CitiesNeed to Rethink Parking” (Para enfrentar as mudanças climáticas, as cidades
precisam repensar o estacionamento),
publicado no site do Institute for Transportation & Development Policy.
Segundo este trabalho,
Desde o advento do veículo motorizado, o
desenvolvimento do armazenamento de automóveis tornou-se tão prioritário quanto
a infraestrutura rodoviária e rodoviária, perpetuando uma 'cultura do carro'
que existe hoje em todo o mundo. Com a projeção de 1,5 bilhão de carros nas vias
em todo o mundo até 2025, o desenvolvimento de mais vagas de estacionamento só
exacerbará a desigualdade e acelerará as mudanças climáticas, se não
priorizarmos formas de transporte sustentáveis e acessíveis em vez de carros.
Dado que cerca de 41% das emissões globais virão apenas de carros de passeio,
precisamos de gerenciamento, preços e redução mais eficientes do estacionamento
na rua e fora dela, para ajudar a desincentivar o trânsito de veículos, mitigar
as emissões e recuperar o valioso espaço público. Cidades em todo o mundo
precisam urgentemente reavaliar políticas de estacionamento ultrapassadas, para
proteger o meio ambiente e melhorar a qualidade de vida de todos os moradores.
E do ponto de
vista social,
a política de estacionamento desigual
também teve várias implicações na equidade nas cidades. A alocação de recursos
públicos para a construção de estacionamentos gratuitos e de baixo custo acaba
transferindo os custos para todos, de modo que as comunidades de baixa renda
acabam tendo um papel tão importante no subsídio à infraestrutura, que tende a
beneficiar os proprietários de carros, com mais renda, e aqueles capazes de
arcar com custos recorrentes de combustível. Ao mesmo tempo, os sistemas de
transporte público – cujos passageiros tendem a ser compostos por populações de
baixa renda – permanecem perpetuamente subfinanciados em muitas cidades. Os que
mais se beneficiam com a contínua expansão da infraestrutura de estacionamento
nas ruas e em empreendimentos comerciais e residenciais são aqueles que já
contam com bons recursos, embora todos nós acabemos arcando com os custos
econômicos e ambientais relacionados.
Como se vê pelo fenômeno aqui analisado, há necessidade urgente de revisão da legislação urbanística em Santos, estabelecendo uma taxa de ocupação mínima, limitando ao invés de incentivar a oferta de vagas. É fundamental criar critérios para o posicionamento do estacionamento dentro dos lotes, aproximando as edificações das calçadas públicas em eixos comerciais, limitando o rebaixamento de guias e o número de acessos de veículos nos lotes. Os imensos estacionamentos ofertados, como no setor urbano analisado, embora muito convenientes para quem possui automóvel são socialmente iníquos, degradam efetivamente a urbanidade, afetam deleteriamente o meio ambiente pela impermeabilização dos lotes e redução da arborização pública, reduzindo e desperdiçando a área construída e o potencial de arrecadação municipal de IPTU e ISSQN.
Sobre esta
questão, ver o trabalho “Whats with that empty lot in the heart of the city”.
Segundo esta fonte, que analisa o caso de cidades americanas, “sentar em cima”
de um pedaço de terra pode ser imensamente lucrativo. “Os proprietários podem
não ter pressa para desenvolver ou vender. E uma das principais razões para
isso tem a ver com os incentivos por trás da forma como tributamos a
propriedade em quase todas as cidades dos Estados Unidos”. Este raciocínio pode
ser transportado para o caso de Santos, pois um estabelecimento de varejo com área
construída proporcionalmente pequena com relação ao lote, ou um estacionamento
em um lote sem edificação, localizados em um eixo viário como a Avenida
Conselheiro Nébias, garantem o pagamento dos tributos e ainda viabilizam uma
renda da terra. Isto é suficiente para que o proprietário aguarde a valorização
do setor urbano e lá na frente lucre com isso, sem que tenha contribuído com
valores significativos para a manutenção da infraestrutura urbana e para a
geração e distribuição de riqueza. Ao contrário, ao especular, o dono do imóvel
contribui com a degradação da paisagem urbana, com a criação de espaços que
repelem pedestres e desperdiça o potencial de geração de renda e empregos em
áreas centrais.
Desde a
primeira metade do século XX, a legislação urbanística de Santos fixou taxa de
ocupação máxima para os lotes, variável de acordo com a zona, seguindo os
cânones modernistas, que defendiam a maior oferta de áreas verdes e de fruição
pública no nível do térreo, possibilitada pela verticalização dos edifícios.
Não demorou muito para que os supostos benefícios desse dispositivo legal se
tornassem infrutíferos, posto que os térreos livres, nas áreas em que foram
produzidos, desapareceram com o fechamento dos lotes no alinhamento frontal e
com a ocupação por estacionamento. Além disso, logo foram colocados em xeque os
supostos benefícios da taxa de ocupação máxima para a drenagem urbana e para o
arrefecimento da temperatura, decorrentes da nunca alcançada maior oferta de
áreas verdes nos lotes, vitimada pela pavimentação de quintais e dos recuos.
Merece destaque
a necessidade de regular a posição dos estacionamentos dentro do lote,
impedindo que sejam localizados à frente das construções, posto que assim
contribuem para a eliminação da integração entre os estabelecimentos comerciais
e a calçada, como alertava Jane Jacobs, no seminal “Morte e vida de grandes
cidades” (Martins Fontes). Segundo a autora, uma das mais incisivas críticas do
planejamento urbano de matriz modernista, é essencial garantir a proximidade
dos estabelecimentos comerciais das calçadas, onde se desenvolve o “balé” do ir
e vir de pessoas, preservando a vitalidade urbana dos bairros e gerando um
clima de segurança, posto que as pessoas que de dentro dos estabelecimentos
contemplam o caminhar dos pedestres nas calçadas, são os “olhos das ruas”.
Sobre esta
questão, em “A Cidade ao Nível dos Olhos. Lições para os plinths”
(EdiPUCRS) [4], organizada por Karssenberg, Laven, Glaser e van ‘t Hoff, no
capítulo “Os plinths da cidade calorosa”, Thaddeus Muller aponta que
A qualidade fundamental que é adicionada
à vida urbana pública pelas lojas pequenas com fachadas abertas é a sua
permeabilidade, a integração parcial do público (a rua) e o privado (a loja).
Pequenas lojas com fachadas abertas não criam somente o contexto para a cidade
calorosa, mas permitem movimento entre o público e o privado. Vida pública
possibilita que atravessemos essas fronteiras e que possamos ir de uma
experiência para a outra. Essa oscilação, esse movimento, cria uma experiência
oposta à da situação urbana fria, fixa e estática, onde nos sentimos presos em
um não envolvimento e estranhamento. Este movimento cria interação, sentido, histórias
e narrativas através das quais nos apegamos à cidade, às suas possibilidades e
transformações.
Portanto, a
aproximação das fachadas das lojas com a calçada é um elemento essencial para
garantir esta experiência interativa que garante a vitalidade urbana. Dessa
forma, o varejo de grande porte e a oferta de estacionamentos à frente desses
negócios afugentam os pedestres e criam um obstáculo à vitalidade, convidando
apenas os usuários dos veículos motorizados ao ingresso nos estabelecimentos. O
efeito desta seleção é consequentemente o esvaziamento das ruas daqueles que
têm intenção de se abastecer à pé, no pequeno comércio.
A exigência
de número mínimo de vagas provoca, também, outra seleção social, a do tipo de
empresários que podem se estabelecer nas áreas onde vigora, pois dificulta a
abertura de pequenos negócios, aumentando o valor dos aluguéis ou de aquisição
de terrenos. Isto ocorre pois quanto maiores os espaços requeridos para
estacionamento nos lotes, menor a área de venda no nível do térreo e consequentemente
a renda do pequeno varejo. Mesmo após o surgimento da exigência de maiores
testadas de lote, no início do século XX, o parcelamento do solo da Avenida
Conselheiro Nébias ainda permitia a implantação de um terciário de menor porte,
com relação ao que se observa nesse trecho do Boqueirão. Mas a exigência de
vagas provavelmente está contribuindo para esta seleção, com fuga do
comerciante local e uma clivagem que favorece as grandes redes varejistas, que se
beneficiam da maior oferta de vagas.
Outra
consequência nociva dessa forma de urbanização é a ampliação da distância entre
os acessos das atividades, que implica no aumento das distâncias de
deslocamentos para os pedestres, estimulando o uso de automóveis, com as
consequências ambientais já sobejamente conhecidas, em pleno processo de
mudanças climáticas.
Assim, a
legislação urbanística em vigor e esta modalidade de empreendimentos produzem
uma forma de urbanização extremamente perniciosa, pois esvazia a cidade de
construções, sem que os espaços livres sejam ocupados por áreas verdes ou
espaços de fruição para as pessoas, como sonhavam os modernistas. Ao contrário,
está se produzindo uma quantidade enorme de espaços ociosos, inclusive nos
horários comerciais, posto que o exagero na oferta de vagas não é coibido pela
lei municipal. Estes espaços poderiam ter usos muito mais produtivos, gerando
muito mais arrecadação e postos de trabalho. Portanto, o modelo que está se
reproduzindo neste trecho da avenida, e que se generaliza em outros bairros, está
reduzindo a densidade residencial e terciária de uma cidade cujo valor da terra
é muito elevada.
Nesta contradição
urbanística e ambiental que se está produzindo na Avenida Conselheiro Nébias,
sob o olhar complacente da Prefeitura, são pedestres e ciclistas os maiores
prejudicados, por todas as razões apresentadas. Como escreveu o arquiteto
Benjamin Ledford, com a exigência de número mínimo de vagas de estacionamento, “proibimos
o que mais valorizamos”
(https://www.strongtowns.org/journal/2017/11/20/we-forbid-what-we-value-most) “Em
vez de casas de família e negócios prósperos, temos acres e acres de asfalto”.
Assim, é
fundamental uma discussão com vistas à fixação nos lotes de taxas de ocupação
mínima, número máximo e orientação do posicionamento de vagas, impedindo estacionamento
no recuo frontal e limitando o rebaixamento de guias. Sem que estas diretrizes
sejam adequadamente regulamentadas, a Avenida Conselheiro Nébias e muitas
outras vias de nossa cidade vão continuar se tornando áreas cada vez mais degradadas
e inóspitas, repelindo a circulação de pedestres e ciclistas, e desperdiçando o
potencial de arrecadação municipal. O caso específico da Avenida Conselheiro
Nébias é ainda mais grave, pois a via cumpre uma função extremamente relevante
em termos metropolitanos, uma vez que concentra um terciário de importância
regional, ao longo de seu eixo. Portanto, já passou da hora da Prefeitura e da
sociedade discutirem a reversão desse modelo deletério de urbanização.
Este caráter
metropolitano reflete na concentração de postos de trabalho ao longo do eixo da
via, mas não nos itinerários de ônibus intermunicipais (linhas da
BrMobilidade/EMTU), com poucas linhas circulando pela avenida, situação que
tende a ser compensada quando a nova etapa do VLT, prevista para 2023, estiver
concluída. Porém, na via circulam 15 linhas municipais, com correspondente
circulação de passageiros em vários pontos que concentram viagens, como nas
áreas de influência de universidades, serviços de saúde e outros. Também é
importante considerar as transformações que poderão ocorrer nas quadras junto à
avenida, com a implantação da segunda etapa do VLT em vias paralelas (Ruas
Constituição e Campos Melo), a uma quadra de distância, em ambos os lados da
avenida, entre a área central e confluência com o eixo das Avenidas Gen.
Francisco Glycério e Afonso Pena.
A norma de
uso e ocupação do solo, Lei Complementar nº 1.006/2018, criou uma zona
especial, a Área de Adensamento Sustentável (AAS), área hachurada em azul claro
no mapa da Figura 22, que se estende de norte a sul, desde a Rua Bittencourt
até as avenidas da orla.
Figura 22.
Trecho do Anexo IV – Zonas Especiais da Lei Complementar nº 1.006/2018
Fonte:
Prefeitura de Santos, 2018.
Esta zona foi
criada com o objetivo de promover o adensamento sustentável ao longo da
Avenida Conselheiro Nébias, em função de seu papel concentrador de linhas de
transporte coletivo, a ser reforçado com a chegada do VLT (grifo nosso). Não
cabe aprofundar aqui a operacionalização deste adensamento pretendido, pois não
é o tema principal. Porém, passados quatro anos da sanção da lei, o referido
instrumento não produziu efeitos, em que pesem as crises econômica e sanitária,
que podem ter contribuído para a redução da atividade imobiliária, no período. Alguns
instrumentos interessantes para garantir o incremento e segurança da mobilidade
ativa, como o incentivo a áreas livres de uso público nos recuos frontais, de
forma a ampliar o espaço da calçada pública não foram adequadamente
regulamentados na norma. E a ausência de uma ciclovia, numa das avenidas com
maior circulação de ciclistas trabalhadores e estudantes da cidade, é uma
lacuna indesculpável.
Portanto,
além da necessidade de regular adequadamente os estacionamentos nos lotes, é
essencial garantir a oferta de áreas livres nos recuos frontais em atividades
públicas e a elaboração de instrumentos urbanísticos que incentivem a produção
dessas áreas livres para uso público nos empreendimentos privados, posto que é
economicamente inviável a desapropriação dessas faixas de terreno, dado o alto
valor do solo nesta área da cidade. Uma política urbana que atue neste sentido
poderá minimizar os efeitos nocivos do recuo frontal de 7,0 m, em áreas já
vocacionadas para o terciário no nível do térreo. Um bom exemplo desta fusão
entre recuo frontal e calçada pública pode ser encontrado no coração comercial
do bairro Gonzaga, como se observa na Figura 22. Este trecho do bairro deve seu
dinamismo a esta forma de urbanização que se desenvolveu entre as décadas de
1930 e 1970, gerando um continuum de estabelecimentos com faixadas ativas e
áreas livres de uso público frontais.
Figura 23. Calçadão da Galeria 5ª Avenida, no Gonzaga.
Fonte: Google
Earth, 2020.
É importante
que a Prefeitura implemente política de incentivo para a transformação da
Conselheiro Nébias de forma a incorporar esta diretriz de aproximação entre os
estabelecimentos comerciais e os pedestres. Tal iniciativa pode impedir que a
degradação de trechos da via se torne irreversível.
[1] Conforme avaliado em Carriço (2002, p. 113),
“esse um instrumento fundamental para conferir à paisagem urbana, uma nova
aparência, mais condizente com os preceitos higienistas. No entanto, a
obrigatoriedade do recuo numa cidade (então) eminentemente horizontal
obviamente reduziu o aproveitamento dos lotes, restringindo o acesso da
população de baixa renda aos imóveis construídos nessas avenidas.”
[2] SEABRA, O. C. de L. A Muralha que Cerca o Mar – Uma Modalidade de Uso do Solo Urbano, Dissertação de Mestrado, FFLCH USP, São Paulo, 1979.
[3] O bisavô deste blogueiro foi gerente do cassino e também viveu na Av. Conselheiro Nébias, no lote contíguo ao hospital Casa de Saúde, no Boqueirão.
[4] O plinth é a área visível aos olhos no nível do pedestre que transita pela calçada pública.
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