15 anos de Estatuto da Cidade. O quê comemorar?

Neste 10 de julho, completa-se década e meia da sanção da Lei Federal nº 10.257, o Estatuto da Cidade. Naquele distante 2001, celebrava-se o acontecimento, pois o Estatuto foi o produto de décadas de luta pela reforma urbana, liderada por movimentos sociais, técnicos e gestores públicos comprometidos com a luta por cidades mais justas e inclusivas.
Esta lei criou as bases para uma nova ordem jurídico-urbanística, ao regulamentar os princípios constitucionais da função social da propriedade e da cidade, instituindo importantes instrumentos de política urbana, que configuram poderoso arsenal à disposição dos municípios, para o enfrentamento da iniquidade social, que caracteriza o processo de urbanização brasileiro, que está por esgotar-se ao nos aproximarmos de 90% da população vivendo em cidades.
Desde a década de 1960, quando o Instituto dos Arquitetos do Brasil apresentou a primeira proposta de reforma urbana e movimentos sociais que a defendiam foram perseguidos pela ditadura, postergou-se o enfrentamento sistemático das péssimas condições de vida da maioria da população de nossas cidades.
O resultado deste atraso é o gigantesco déficit de saneamento, mobilidade e habitabilidade em geral, que se verifica na quase totalidade de nossas médias e grandes cidades. Na verdade, um enorme déficit de direito ao acesso ao que as cidades têm de melhor a oferecer.
A Carta de Embu, importante documento elaborado por urbanistas e juristas, em dezembro de 1976, foi um marco essencial desta trajetória de luta, ao defender a separação entre direito de propriedade e direito de edificar. Redigida no mesmo ano em que a ONU realizou a primeira conferência Habitat de assentamentos humanos, em Vancouver, e baseada em avanços de política urbana originados na Europa e América, a Carta lançou as bases para instrumentos poderosos, como o solo criado e a outorga onerosa do direito de construir - OODC.
Nesta época, já era evidente a necessidade de adequar a produção imobiliária à infraestrutura e aos equipamentos urbanos disponíveis, e sobretudo de enfrentar o problema da valorização diferenciada do solo urbano, responsável pela segregação socioespacial em nossas cidades.
Mais de uma década depois, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana - MNRU, integrado pela Federação Nacional dos Arquitetos, apresentou emenda popular visando a inserir um capítulo sobre a reforma urbana, na Constituição. A proposta objetivava, dentre outros avanços, a conceituação do direito à propriedade como um direito social. Mas apesar de subscrita por mais de 200 mil cidadãos, o único avanço conquistado foi a inserção dos artigos 182 e 183, na Carta Magna. Ainda assim, estes dispositivos configuraram significativa evolução dos conceitos de função social da cidade e da propriedade urbana, até então marcados pelo predomínio dos direitos individuais sobre os sociais.
A partir deste momento, a retenção especulativa de imóveis vazios, desocupados ou subutilizados, em áreas urbanas com adequado nível de infraestrutura e equipamentos sociais, pode ser melhor enfrentada pelos gestores municipais.
Já em 1989 é apresentado, pelo senador Pompeu de Souza, o projeto de lei nº 181, visando regulamentar o capítulo da política urbana da Constituyyição e que vai resultar, dez anos mais tarde, no Estatuto da Cidade.
Mas durante a década de 1990, enquanto o projeto tramitava com dificuldades, a aplicação pioneira do novo marco constitucional, por parte de municípios como Porto Alegre, São Paulo e Santos, enfrentou enorme resistência, organizada por setores patrimonialistas da sociedade, em face da ausência da regulamentação dos artigos 182 e 183.
Em 2000, o MNRU obtém uma grande vitória, com aprovação da Emenda Constitucional nº 26, que insere o direito à moradia no rol dos direitos sociais, no artigo 6° da Carta Magna.
No ano seguinte, após muitas idas e vindas em sua tramitação no Congresso, é aprovado o novo marco legal da política urbana, o Estatuto da Cidade, permitindo a aplicação de vários instrumentos que visam ao melhor ordenamento de nossas cidades.
Contudo, decorridos estes anos todos, observa-se que poucos municípios regulamentaram com efetividade estes instrumentos, de forma a enfrentar concretamente os problemas urbanos decorrentes da má remuneração generalizada da população urbana e da injusta forma de distribuição da terra, que caracterizam nossas cidades.
Em Santos, o maior avanço no campo da reforma urbana foi a regularização das zonas especiais de interesse social - ZEIS, em 1992, muito antes da sanção do Estatuto. Esta lei possibilitou a implantação de muitos empreendimentos habitacionais para famílias de baixa renda, e reduziu os impactos nocivos do grave processo de expulsão desta população para municípios vizinhos, decorrente do alto valor imobiliário na cidade.
Em 2005, foi sancionada a lei complementar municipal nº 551, que regulamentou outros importantes instrumentos do Estatuto, sem contudo ter efeitos expressivos. Desde então, apenas o Estudo de Impacto de Vizinhança - EIV, regulamentado apenas em 2013, tem demonstrado efetividade, minimizando ou compensando os impactos urbanos de grandes empreendimentos.
Mas outros instrumentos de maior alcance, como coeficiente de aproveitamento básico - CAB, parcelamento, edificação e utilização provisórios - PEUC - e a OODC, ainda não foram aplicados com eficácia em nosso município.
Diferentemente do EIV, instrumento restrito a uma determinada área de influência, a OODC é mais abrangente, e busca garantir recursos para que o município invista em infraestrutura, equipamentos públicos, transportes, áreas verdes etc. em áreas onde a capacidade de suporte do adensamento é inferior a nível aceitável.
Mas este contexto de aplicação ineficaz dos principais instrumentos do Estatuto, em Santos, não é diferente na maior parte dos municípios, com exceção de alguns como São Paulo, em que a política urbana transformou-se em política prioritária de governo.
Os grandes entraves são o generalizado desconhecimento, pela sociedade, dos benefícios da efetiva aplicação do Estatuto, além do caráter facultativo que reveste esta aplicação, nos termos do parágrafo 2° do artigo 182 da Constituição.
Neste aspecto, destaca-se a Resolução Recomendada nº 148, de 2013, do Conselho Nacional das Cidades, que preconiza a todos os municípios a adoção do CAB como princípio balizador da política fundiária urbana, sem contudo constituir-se em efetiva obrigação de cumprir.
Mas diante do grave quadro de segregação social, que marca nossas cidades e do qual nem mesmo cidades com boas condições de vida, como Santos, escapam, a aplicação dos instrumentos de política urbana do Estatuto da Cidade é uma opção ou um dever?
Podem os municípios simplesmente ignorarem esta situação e descumprirem os princípios constitucionais da função social da cidade e da propriedade urbana?
Ou a “faculdade” prevista em nossa Constituição tem a forma de um poder-dever da administração pública, como defendem juristas como Nelson Saule e Edésio Fernandes?
Podemos comemorar plenamente a data de hoje, enquanto a justiça social no espaço urbano for opcional para nossos governantes

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