Um século de zoneamento em Santos



Reprodução da capa da publicação de 1924, com a Lei nº 675/1922 e normas correlatas. 
Fonte: Câmara Municipal de Santos

Por José Marques Carriço

Texto baseado na dissertação de mestrado "Legislação urbanística e segregação espacial nos municípios centrais da Região Metropolitana da Baixada Santista" (disponível aqui).

Há exatamente um século, era sancionada a Lei nº 675, de 28 de junho de 1922, Código de Construções, que instituiu o primeiro zoneamento de Santos, provavelmente um dos primeiros do país. Era um zoneamento muito simples, porém já continha índices como recuos, taxa de ocupação e limite de altura das construções.

O zoneamento moderno foi criado em Frankfurt em 1891 (ver aqui) e depois foi adotado nos EUA, sendo o de Nova Iorque, de 1916, o primeiro e mais importante, pois serviu de modelo para muitas cidades americanas e depois do mundo todo. Portanto, nosso zoneamento foi aprovado apenas seis anos após o de Nova Iorque!

Assim como o zoneamento de Nova Iorque, o Código de 1922 foi uma compilação de várias leis urbanísticas esparsas, aprovadas desde o final do século XIX. Uma das grandes novidades foi a obrigação de que os projetos fossem aprovados pela Prefeitura antes de serem construídos. O código também continha toda uma parte dedicada ao cálculo das estruturas de concreto armado, a grande novidade tecnológica do início do século, no país.

A Lei nº 675/1922 visava fixar um padrão de higiene e segurança das edificações, contribuindo para substituir a arquitetura colonial, na área central da cidade e segregando as edificações de padrão considerado inferior às áreas então periféricas, algo que já vinha sendo objeto de leis anteriores, como a Lei nº 460, que estabelecia a proibição da construção de chalés de madeira nas áreas "nobres" da cidade.

Uma série de artigos publicada entre março e abril de 1918, no jornal Gazeta do Povo, revela a polêmica em torno da elaboração deste código. Na verdade, a proposta original, de autoria do engenheiro da municipalidade, Silva Telles, chefe da Diretoria de Obras e Viação da Prefeitura, enfrentou séria oposição de categorias profissionais, por tentar regulamentar a atividade de projeto e construção, determinando quais tipos de obras poderiam ser executadas por cada tipo de profissional – construtores, arquitetos e engenheiros.

O projeto de lei dividia os profissionais do setor da construção em duas categorias: de primeira e de segunda, delimitando o espaço de ação profissional de cada uma, segundo o tipo de obra. À primeira categoria pertenceriam todos aqueles profissionais, como engenheiros e arquitetos, diplomados, ou os não diplomados de “notória competência”. À segunda pertenceriam aqueles que tivessem “ao menos um ano de prática”.

O projeto limitava a atuação dos profissionais da segunda categoria às construções de até três pavimentos[1], bem como “fazer e refazer construções simples”. Esta tentativa de reserva de mercado, que deve ter interessado empresários de maior porte, despertou a oposição de parte da sociedade e da imprensa, suscitando uma série de artigos na Gazeta, questionando o projeto do Código.

No primeiro destes artigos, publicado em 21 de março daquele ano, pode-se ter, contudo, uma avaliação clara das forças políticas que influíam na elaboração da regulação urbanística da época. O referido artigo dava conta da nomeação, pelo presidente da Câmara, de uma “grande comissão de dezenove membros” que deveria dar a última palavra sobre o projeto.

Mais adiante são relacionados os membros da comissão: Inspetor da Saúde do Estado, chefe da repartição de Saneamento, um diretor e o presidente da Companhia Construtora de Santos, consultor jurídico da Municipalidade, presidente da Associação Predial[2], dois engenheiros de renomada atuação – Edmundo Krug e Alberto Monteiro de Carvalho, dois médicos de renome – Alberto de Moura Ribeiro e Olyntho Rodrigues Dantas, três membros da Comissão de Justiça da Câmara, três da de Finanças, e três da de Obras Públicas e Viação – totalizando nove vereadores. Ora, ficava evidente a falta de participação, àquela época, de representantes das classes trabalhadoras, o que foi a prática até a década de 1990[3]

A necessidade de reforma do Código de posturas, de 1897, de inspiração higienista, resultou na elaboração do código de Construções de 1922, com grande influência de representantes das categorias dominantes da sociedade. Este fato é importante para que se possa compreender o processo político e ideológico de elaboração deste e dos demais códigos e planos de Santos.

O texto da Lei acabou por suprimir a divisão entre duas categorias de profissionais, mais introduziu a obrigatoriedade de que estes obtivessem o registro na Prefeitura, dando para isso um prazo de seis meses, findo o qual o profissional não poderia mais requerer a aprovação ou licença para construir uma edificação. Venceu, portanto, a pressão política dos pequenos e médios construtores.

Quanto ao espaço urbano propriamente dito, o código manteve os dispositivos já criados pelas leis anteriores, tais como recuos, dimensões das frentes dos lotes e outros. No entanto, a nova lei foi mais clara ao determinar um novo perímetro urbano, suburbano, de transição e rural, em seu Capítulo 2°, descrevendo seus limites e vinculando a estes alguns usos e padrões construtivos peculiares.


Perímetros das zonas urbana, suburbana, de transição e rural, na área insular do Município, definidos pelo Código de Construções de 1922, sobre base cartográfica de 1968. 
Fonte: Carriço (2002, p. 124). Obs.: Os perímetros foram desenhados a partir da interpretação das descrições apresentadas no texto da lei, uma vez que a planta não foi localizada no Arquivo Histórico de Santos.

O perímetro urbano correspondia aos atuais bairros do Saboó, este entre o Valongo e o rio Saboó - atual rio Lenheiros, Valongo, Centro, Paquetá e parte da Vila Mathias, entre o Centro e as ruas Lucas Fortunato e Luiza Macuco, bem como os terrenos com frente para as avenidas Anna Costa e Conselheiro Nébias, e os com frente para as praias da Barra.

O perímetro suburbano, correspondia às áreas da atual Zona Leste da área insular do Município, entre o Canal 1 e morros, entre aquele canal e a avenida Anna Costa, entre esta e a avenida Conselheiro Nébias, a entre esta última e o cais, ao sul do perímetro urbano, limitando-se, ao leste, pela faixa de 50 m, do alinhamento par do Canal 4, até o fundo dos terrenos de frente para a orla marítima e, ainda, na área da atual Zona Noroeste, compreendia os atuais bairros da Alemoa, Chico de Paula e parte do Santa Maria, entre a atual av. Nossa Senhora de Fátima, o Matadouro Municipal - atual SESI do bairro Santa Maria - e a extinta linha da São Paulo Railway, que cortava os terrenos onde hoje se situa o Jardim Botânico, na Zona Noroeste. 

Portanto, os lotes ao longo das avenidas Anna Costa, Conselheiro Nébias, Canais 1 e 4 e praia da barra, de grande valorização imobiliária, também estavam contidos no perímetro urbano. O perímetro de transição consistia na área hoje correspondente aos bairros da Ponta da Praia, Aparecida, Estuário e Embaré, ou seja, entre o Canal 4, o fundo dos terrenos de frente para a Barra e o cais, bem como a imensa maioria da atual Zona Noroeste, que não estava contida no perímetro suburbano, e nas parcelas ocupadas das áreas da Bocaina (Vicente de Carvalho) e Cubatão - que a esta época pertenciam ao município de Santos. Já o perímetro rural incluía as áreas restantes: morros, área continental de Santos e parcelas não ocupadas dos atuais municípios do Guarujá e Cubatão.

A despeito dos perímetros definidos, o código estabeleceu um zoneamento de uso, o primeiro explicitado na legislação santista, de cunho bastante simples, mas que não correspondeu exatamente ao recorte dos perímetros. Foram criadas as Zonas Comercial, Residencial e Industrial. Não era um zoneamento rígido. Pelo contrário, o Capítulo 5°, em seu artigo 18°, assim dispunha: 

Para maior eficiência dos diversos serviços municipais, melhor aproveitamento dos terrenos pelos proprietários, máxima comodidade dos habitantes, regularização dos transportes e, especialmente, para garantia das condições de higiene desejáveis, devem, tanto quanto possível, ser distintas as zonas de habitação das do comércio e da indústria (grifo do autor).

Fonte: Carriço (2002, p. 125). Obs.: Os limites das zonas foram desenhados a partir da interpretação das descrições apresentadas no texto da lei, uma vez que a planta não foi localizada no Arquivo Histórico de Santos.

A leitura desse artigo permite supor que, certamente os critérios para liberação do direito de edificar, segundo a área da cidade, poderiam variar de forma bastante subjetiva, o que contrastava com o rigor exigido na mesma lei, no tocante à iluminação, insolação, ventilação e dimensões dos cômodos, bem como quanto ao cálculo das estruturas de concreto, uma vez que em seu Capítulo XI as definições destes elementos para cálculo eram apresentadas na forma de um verdadeiro compêndio de calculo estrutural.

Os limites da Zona Comercial eram, praticamente, os correspondentes aos atuais bairros do centro, Valongo, Paquetá e Saboó, este entre o Valongo e o rio Saboó (ou rio Lenheiros). A Zona Residencial situava-se imediatamente ao sul da Comercial, entre os morros, orla, Canal 4 e cais, deixando fora os atuais bairros do Estuário, Embaré, Aparecida e Ponta da Praia. A Zona Industrial correspondia à Zona Noroeste, a partir do rio Saboó.

O código vedava a construção de indústrias “insalubres, perigosas ou ruidosas”, na Zona Comercial. Na Zona Residencial proibia industrias “nocivas, insalubres” e tolerava as “ruidosas, desde que devidamente isoladas” (grifo do autor). Nestas zonas eram permitidas padarias, cervejarias, oficinas mecânicas, correarias e refinações de açúcar. Especificamente na Zona Residencial era permitido construir serraria e garagens de grande porte. Eram esses os enquadramentos das indústrias segundo seu porte.

Outra novidade do Código era a exigência da apresentação de “plano de construção” detalhado e documento do terreno para a concessão da licença para edificar, sendo que os construtores e arquitetos deveriam ter registro na Prefeitura. Esta lei criou, ainda, a figura da Carta de Habitação, mais conhecida como “habite-se”.

Os critérios para edificar eram aplicáveis, sobretudo nos perímetros urbano e suburbano, sendo exigidos, apenas, fora dessas áreas, cuidados especiais, já em vigor antes da lei, para a construção de chalés de madeira, no perímetro de transição. Essa “liberalidade”, que contrastava com um alto rigor de exigências para os dois primeiros perímetros, seguramente contribuiu para demarcar padrões de urbanização e construção nessas regiões, incidindo no valor imobiliário dessas áreas. Dessa forma, o Código de 1922 reforçou dispositivos de exclusão, uma vez que as classes de baixa renda passaram a ter maiores dificuldades para habitar nos perímetros urbano e suburbano. Não por acaso, a partir dessa época ocorreu uma acentuada proliferação de chalés nos bairros junto ao estuário e nos morros.

Essa lei continha algumas contradições típicas de um período em que ainda se buscava remover os vestígios da cidade colonial e os cortiços. O artigo 47° assim dispôs: “A mais ampla liberdade é facultada quanto ao estilo e à forma da arquitetura dos edifícios, cabendo, porém, à Prefeitura opor-se à construção dos projetos que, flagrantemente atentarem contra a estética” (grifo do autor). Entende-se, assim, que os edifícios deveriam obedecer ao estilo moderno, de inspiração europeia, banindo o uso de repertório estilístico e materiais típicos da arquitetura colonial, garantindo a salubridade indispensável para a construção de uma cidade higiênica.

Por fim, cabe destacar que menos preocupados com a densidade habitacional, que com a ventilação e insolação, os legisladores estabeleceram limites para a altura dos edifícios, os quais variavam segundo a localização e largura da via, de forma que, no Centro, onde os prédios podiam ser mais altos, a altura máxima admitida era de 18 m, para construções em vias com largura superior a 10 m, e de 14 m, para as vias mais estreitas. E, ainda, nos principais eixos viários a largura mínima dos lotes mantinha-se em 6 m, mais os recuos laterais obrigatórios, que poderiam variar entre 1,5 m e 2,0 m, segundo a via em que o terreno estivesse localizado.

No entanto, logo após sua promulgação o novo Código de Construções teve sua aplicação suspensa, provavelmente em função das alterações que trazia para a vida da sociedade santista terem sofrido algumas resistências. Mas logo em seguida, pela lei N° 679, de 9 de outubro de 1922, a suspensão foi tornada sem efeito e com modificações mínimas o código voltou a vigorar.



[1] É importante frisar, segundo foi possível perceber por meio da leitura de periódicos da época, que o conceito de pavimento mudou na virada do século. Para os efeitos de contagem do número de pavimentos, diferentemente do século XIX e do período atual, o térreo não era contabilizado.

[2] A Associação Predial de Santos foi, possivelmente, a primeira e uma das mais bem sucedidas cooperativas de Santos, tendo operado na área de construção habitacional, produzindo na região, até o período da segunda guerra mundial, cerca de 2.300 unidades habitacionais.

[3] O Conselho Consultivo do Plano Diretor Físico do Município de Santos - COPLAN, de 1968, era composto por representantes das mesmas classes sociais, tal como no início do século.


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